Guilherme Centazzi é praticamente desconhecido do público
português leitor de romances. No entanto, é seu o primeiro romance nacional moderno,
anterior às obras românticas de Alexandre Herculano e de Almeida Garrett. Este publica
o primeiro volume de O Arco de Santana,
em 1845. Herculano publica Eurico, o
Presbítero em 1844. Eram tidos como os primeiros romances modernos. Contudo,
deve-se a Pedro Almeida Vieira aquilo a que se poderia chamar a redescoberta de
Guilherme Centazzi, com a edição, pela Planeta, do mais importante romance
desse autor, O Estudante de Coimbra –
Relâmpago da História Portuguesa desde 1826 até 1838. A obra foi publicada
em três tomos entre 1840 e 1841. Mais, ainda segundo informação de Almeida
Vieira, Centazzi tinha já publicado em 1838 um romance, Carlos e Beatriz, em 1838, mas esse era uma obra bastante
incipiente, que foi posteriormente reescrita e tomou outro título.
Se se comparar o romance de Centazzi com a obra de Silva
Gaio, Mário (ver leitura aqui),
escrita quase trinta anos depois, apesar de terem o mesmo tempo histórico como
pano de fundo – o da guerra civil entre liberais e absolutistas – e, em ambos,
se desenrolar casos de paixão amorosa contrariados pela acção de agentes do
absolutismo, O Estudante de Coimbra
parecerá, ao leitor de hoje, uma obra bem mais contemporânea do que a de Silva
Gaio. Fundamentalmente, há um distanciamento crítico do narrador – e também principal
protagonista do romance – relativamente a si e às suas crenças. Enquanto o
ponto de vista do narrador, na terceira pessoa, de Mário é incapaz de se distanciar das crenças ideológicas liberais
que sustenta, o estudante de Coimbra, comprometido também ele com as ideias e
as forças constitucionalistas de D. Pedro, possui uma fina ironia que dissolve
com eficácia o pathos ideológico,
deixando perceber um pensamento mais racional acerca de si e dos outros, das
suas paixões, interesses e limites.
A escolha da figura do estudante universitário como personagem
principal da narrativa não pode ser vista, apesar de Centazzi ter sido estudante e, posteriormente, médico, como um mero dado autobiográfico. O peso
social e político – ou administrativo – daqueles que passavam por Coimbra era
de tal ordem que a opção de Centazzi constituiu uma leitura adequada do país em que nasceu.
Também a Universidade e, mais ainda, aqueles que a frequentavam não deixou de
ser olhada com feroz ironia crítica. O narrador, tendo em conta os diversos
tipos de vida que os estudantes levavam, chega a fazer o cálculo de quantos efectivamente
estudavam com seriedade. Chegou à conclusão que seriam aí uns 10% e que o resto saía de lá
pronto para as maiores incompetências e arbitrariedades.
Não é só da boémia coimbrã que é oferecido um retrato, mas
também dos exilados políticos, dos seus anseios, dificuldades e peripécias. Por
outro lado, o romance mostra com clareza como o absolutismo português terá
aprendido, com os jacobinos franceses, o uso do terror como arma política
fundamental. As prisões arbitrárias, as execuções sem culpa formada, a
perseguição cruel, as denúncias
políticas motivadas por interesses egoístas e ajustes de contas
particulares, a corrupção dentro das cadeias, tudo isso perpassa nas páginas do
romance de Centazzi, que casa, como o fará também mais tarde Silva Gaio, a
intriga e as peripécias políticas da guerra civil com um caso de amor, entre o
estudante de Coimbra e a filha de um velho militar adepto do
constitucionalismo.
O interessante, neste ponto, é que o romance tem dois fins. O
publicado em 1841 e um outro dado na reedição de 1861, na qual o autor
praticamente suprime o terceiro tomo, dedicado a uma reflexão sobre a situação
portuguesa e ao desenlace da intriga. Esta supressão, diga-se, não teve o
condão de melhorar o romance original. Pelo contrário. Os finais têm desenlaces
amorosos diferentes, sendo o da edição de 1841 mais coerente com o
desenvolvimento dos diversos momentos da obra, havendo uma preparação cuidada do fim, contrariamente ao final abrupto proposto em 1861. A edição de Pedro Almeida Vieira
(Planeta, 2010) permite aceder às duas versões do romance. Seja como for, O Estudante de Coimbra merece leitura e
não é um mau começo para a ficção portuguesa moderna. Um leitor de hoje
sentir-se-á bem mais perto do romance de Centazzi do que de Eurico, o Presbítero, de Herculano, ou de O Arco de Santana, de Garrett.
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