segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

O negócio dos extremos


Uma das questões que parece atormentar certos comentadores políticos é a da ausência de uma extrema-direita em Portugal. Apesar de isso não ser completamente verdade – não existe uma extrema-direita organizada politicamente, mas existe uma extrema-direita social, ainda inorgânica –, há uma outra questão que deveria merecer atenção. Haverá uma extrema-esquerda em Portugal? Muita gente – uns por ignorância e outros por oportunismo – utiliza o epíteto de extrema-esquerda quando se refere ao BE e ao PCP. No entanto, alguém acha plausível que dois partidos que, nas últimas eleições, valiam quase 20% do eleitorado, se comportassem como eles se comportaram nos últimos três anos, caso fossem de extrema-esquerda?

Bloquistas e comunistas têm podido, nesta legislatura, influenciar o poder. E têm-no feito. No entanto, em momento algum puseram em causa qualquer dos elementos políticos que constituem o núcleo central de pertença de Portugal aos países democráticos ocidentais. Nem a democracia representativa nem a economia de mercado foram, por um instante, postos em xeque pela sua acção. Por outro lado, apesar das suas discordâncias, também em momento algum foram questionados, por esses partidos, os nossos compromissos externos. Continuamos a pertencer à NATO. Não houve qualquer alteração relativa à União Europeia. Até o malfadado Euro e as suas regras draconianas de controlo do défice e de contenção da despesa pública foram aceites, sem que comunistas e bloquistas se sentissem particularmente incomodados.

O BE e o PCP não tiveram, neste processo e em momento algum, uma actuação de extrema-esquerda. Foram, na realidade, reformistas e pragmáticos. Não exigiram o impossível nem propuseram qualquer delírio utópico, daqueles que a extrema-esquerda é fértil em produzir. Se foram alguma coisa de esquerda, não foram mais do que sociais-democratas. Centraram-se naquilo que poderia beneficiar o seu eleitorado e deixaram de lado o conjunto de crenças ideológicas que os constituíram. Contudo, esta dose de responsabilidade e reformismo pode ter um preço. Vivemos numa época em que a irresponsabilidade, as soluções fáceis e mirabolantes, os devaneios da imaginação e o fervilhar do ressentimento andam à solta. A esquerda, mesmo que o quisesse, já não conseguirá colonizar esse território, que um dia foi o seu. E é aí que está a terra pantanosa que a extrema-direita poderá vir a ocupar. É ela que neste momento transporta o facho da exigência do impossível. É ela que abomina a prudência e execra a responsabilidade.

[A minha crónica no Jornal Torrejano.]

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