quarta-feira, 6 de julho de 2022

Italo Svevo, A Consciência de Zeno

Uma autobiografia publicada por vingança. É deste modo que o Doutor S., o psicanalista de Zeno Cosini, numa espécie de prefácio, apresenta o livro A Consciência de Zeno, de Italo Svevo, publicado em Bolonha, no ano de 1923. A intervenção prefacial do Doutor S., contudo, faz parte da trama romanesca. Ao paciente, Zeno (filho de um comerciante rico, que se sente inepto e doente, a quem o pai não confia, mesmo depois de morto, os seus negócios), é solicitado, como fazendo parte do método de tratamento, que escreva uma espécie de autobiografia. O ele que faz e entrega ao cuidado do psicanalista. Contudo, quando, segundo este, se aproximava da cura, Zeno abandona o tratamento. Como um amante traído, S. publica o texto do seu paciente. A obra explora a consciência do protagonista e é um dos textos fundamentais da literatura do século XX, com a sua exploração da consciência, com uma utilização rigorosíssima da linguagem comum, sem, no entanto, se deixar envolver pelo senso comum. É um dos grandes romances formalmente inovadores no tratamento da subjectividade, no uso da corrente de consciência, ao lado dos de James Joyce ou de Knut Hamsun.

O texto de Zeno estrutura-se em torno de seis pontos: 1. A relação com o tabaco; 2. A relação conflitual com o pai; 3. A história do seu casamento (melhor, do seu noivado); 4. A relação com a mulher e com a amante; 5. A relação comercial com um seu cunhado que, por acaso, casou com a mulher que Zeno amava e irmã daquela com quem, na realidade, casou; 6. Psicanálise e cura. Há na cultura ocidental uma longa tradição confessional, cujo ponto decisivo é Agostinho de Hipona e as suas Confissões, que emergiram na sequência da conversão ao cristianismo. Apesar de não haver uma relação directa entre o texto de Santo Agostinho e o de Svevo, pois o primeiro estabelece-se num processo narrativo que se pretende não ficcional, o que não se passa com o segundo, e ainda, no caso de Agostinho, haver uma reflexão filosófica em torno de problemas religiosos e metafísicos, o que não acontece na autobiografia de Zeno, há uma estreita relação entre o problema da conversão e o da cura. Toda a conversão é sentida como uma cura, a cura do modo como o sujeito se relacionava com o mundo, assim como toda a cura é uma conversão – pela persuasão – a um novo modo de ser, a um modo de ser saudável.

O texto apresenta-se como uma rememoração, um trabalho sobre a memória de acontecimentos passados, já longínquos. Quando, em 1915, Zeno empreende o tratamento psicanalítico, é já um homem velho, segundo os padrões da época. Muitos dos acontecimentos narrados passam-se muitos anos antes. O trabalho sobre a memória tem sempre um risco, o da infidelidade. Isso é sublinhado pelo Doutor S. que ao acabar o seu pequeno texto inicial afirma: Se (Zeno) adivinhasse as surpresas que lhe reservava o comentário do monte de verdades e mentiras que acumulou nas páginas seguintes! Esta intervenção da mentira – isto é, da infidelidade da memória aos factos – coloca o romance de Svevo como uma metaficção, a ficção de uma ficção. O leitor, logo à entrada da obra, é avisado que uma parte do que vai ler é falso. Contudo, não sabe o que é verdadeiro e o que é falso. Esta é uma estratégia ousada para reforçar, no próprio leitor, a suspensão da descrença, a qual, como ensina Coleridge, é fundamental para seguir a trama narrativa de uma obra ficcional. A infidelidade memorial alimenta a crença do leitor na verdade da ficção que tem diante de si.

O romance do Svevo não deve ser desligado da aventura da modernidade ocidental. Do ponto de vista literário, podemos vê-la emergir com o Dom Quixote, de Cervantes. Do ponto de vista filosófico, todavia, o momento fundamental é o pensamento cartesiano. Pode estabelecer-se entre esses dois momentos proveitosas relações. Quixote sofria de um problema epistémico grave, confundia o que desejava ver com a realidade, mergulhado num universo de fantasias e ilusões. Descartes, por seu turno, pretendeu encontrar um caminho em que se eliminassem as ilusões, em que a verdade fosse possível. Ora, é este projecto cartesiano que, de um outro modo, a psicanálise recupera. A terapia psicanalítica pretende conduzir o paciente à descoberta das situações traumáticas (a descoberta da verdade que o inconsciente oculta) que dão origem a comportamentos anómalos. Ora, o facto de Zeno recusar terminar o tratamento e considerar-se curado, ao contrário da pretensão do psicanalista, é uma crítica frontal à psicanálise e à crença que ela encerra sobre a possibilidade de se chegar à verdade. Nos seus apontamentos finais, Zeno escreve: Julga ele (o Doutor S.) que vai receber a confissão dum doente, dum fraco. Pois engana-se! Receberá a descrição duma saúde sólida, perfeita – tanto quanto o permite a minha idade. Não só não quero entregar-me à psicanálise como já não tenho necessidade dela. E, se falo da minha saúde, não é só por sentir que sou privilegiado entre tantos mártires. Não é por comparação que digo que estou saudável, é de modo absoluto. Isto significa, também, uma crítica à tradição originada em Descartes e uma afirmação da filiação do romance na tradição romanesca nascida com Cervantes. Zeno estava saudável, porque se persuadiu que estava saudável: Há muito sabia eu que a saúde, para mim, não podia ser outra coisa além da convicção de estar perfeito e que é tolice digna dum sonhador hipnagógico querer «tratar-me» e não persuadir-me. A realidade não é outra coisa senão aquilo que dela fazem os dispositivos retóricos mobilizados para essa tarefa que é a persuasão. Dito de um outro modo, a verdade é aquilo de que me convenço ser a verdade.

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