JCM, Veteranos de guerra no cemitério americano na Normandia, 2007 |
No cemitério americano, junto a um daqueles mapas de betão e
azulejo que orientam o olhar sobre o horizonte, ao lado de inúmeros visitantes,
estão uma meia dúzia de veteranos de guerra, gente que participou, do lado vitorioso,
nos acontecimentos do Dia D. O vigor que fora o deles terá sido, há muito, substituído
pelo cansaço da vida, pelas artroses e, talvez mais de que todo o resto, pelo exercício
intérmino da memória. Ali estavam, não sei se de passagem ou se a sua vida se terá
tornado, com o funesto turismo de guerra, apenas numa sombra memoriosa que vagueia
sempre por aqueles campos onde, com o terror inscrito no centro do ser, se bateram
até à vitória. A morte nada quis, então, deles, apenas os deixou enredados na sua
sombra e os prendeu ao passado, até que o tempo a disponha à ceifa.
São homens condecorados e que exibem as suas condecorações em
vestes militares anacrónicas. Fazem-no como se o tempo tivesse parado ou se tivesse
esquecido deles. Um, quando chegou, ao ver as pessoas a olhar aquele mapa e a perscrutar
horizontes e linhas de combate, indica um ponto, talvez signo de território escarpado,
e diz que foi ali que combateu e obteve a sua gold medal. Havia nele a inocência de uma criança, a irrisão de quem
se tinha portado bem e, por isso, ganhara o mais apetecido dos brinquedos. Exibia-o
agora, nesse orgulho que nasce da confusão da infância com a senilidade, a uma pequena
multidão de basbaques que olhavam, talvez sem perceber o que significaria aquele
adorno militar.
Há nos homens que combateram e sobreviveram uma humanidade diferente
da que existe naqueles que, como eu, nunca passaram pelo campo de batalha. Aqueles
dias de trevas e de loucura, onde o sangue, a dor e a morte eram companheiros assíduos,
iluminaram-nos e mostraram-lhes um mundo desconhecido dos outros. A guerra estabelece
estranhos laços de camaradagem entre pessoas que, em quaisquer outras circunstâncias,
se ignorariam. Mesmo entre inimigos que, na altura do combate, se teriam morto sem
qualquer razão pessoal, nasce, chegada a paz, um espírito secreto de partilha e
de comunhão que os aproxima e torna irmãos, numa fraternidade que não conhece já
a frágil linha que separa amigos e inimigos.
Naquela gold medal,
não vi o heroísmo daquele homem, a bravura com que enfrentou o fogo inimigo, o acto
pelo qual se «libertou da lei da morte». Aquela medalha, assim exibida, reluziu
para mim como uma fronteira que separa duas humanidades, a dos homens livres que
nunca desceram ao campo de batalha e a dos que hipotecaram a sua liberdade e se
enredaram nas cadeias da memória dos combates, para que os outros fossem livres.
Descobri, naquele instante, como a minha liberdade assenta no sacrifício de uma
outra humanidade, que a necessidade dos tempos fez desprezar a sua própria vida
e a sua própria liberdade. É essa humanidade que reconstrói ainda, passados tantos
anos, o seu mundo como se tecesse um tapete de sombras, feito de clarões e gritos,
odor a sangue e uma nostalgia sem fim, onde os não iniciados jamais penetrarão.
The gold medal é apenas uma porta que
a vida nunca me obrigou a transpor.
[Agora que fez 75 anos o desembarque aliado na Normandia,
republico a série de seis crónicas normandas escritas em 2007 e publicadas num
outro blogue.]
Bela crónica de uma realidade que caminha para ser votada ao esquecimento.
ResponderEliminarUm abraço
Muitas das coisas que se vêem por aí já são fruto desses esquecimento.
EliminarAbraço