sábado, 16 de fevereiro de 2013

O insustentável peso da realidade

Öyvind Fahlström - Mitos como realidade

[Recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo. Post de 20 de Fevereiro de 2010]

Esta imagem grandiosa de D. João II, apesar dos espinhos de que sempre se revestiu a sua evocação para alguns, remonta ao século XVI e às crónicas de Rui de Pina e de Garcia de Resende, tal como, aliás, a ideia de um tempo dourado, insistentemente retomada pela posteridade próxima e distante. No entanto, a ponderação crítica do que hoje se conhece sobre o tema obriga, naturalmente, a matizar a imagem corrente dos anos de ouro do reino de Portugal. Em boa medida, como antes se sublinhou, o pioneirismo da expansão portuguesa para territórios remotos explica-se pela pobreza relativa do reino e pela distância face aos centros de poder da Europa da época. O pequeno território ibérico, que nunca chegou a ser verdadeiramente uma grande potência, teve sobretudo margem de manobra no fim do século XV e no princípio do século XVI, isto é, nos anos anteriores à estabilização de potências europeias de uma outra escala, como foram as grandes monarquias dos Valois, em França, e dos Habsburgo, senhores de territórios por toda a Europa. [Nuno Gonçalo Monteiro, (2009). "Idade Moderna (Séculos XV-XVIII)", in Rui Ramos, Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Gonçalo Monteiro, História de Portugal. Lisboa: A Esfera dos Livros, pp. 199-200]

Em primeiro lugar, refira-se o confronto entre o processo de mitificação do reinado de D. João II, (1455-1495) iniciado já pelos cronistas Rui de Pina (1440-1522) e Garcia de Resende (1470-1536), e a história crítica, a qual se sente obrigada "a matizar a imagem corrente dos anos de ouro do reino de Portugal." Esta imagem dilatada da nossa realidade, uma espécie de idade de ouro à qual se reporta continuamente o sentimento de decadência nacional, é um produto onírico. A sua construção não provém da análise racional dos factos mas de processos fundados na imaginação criadora que recria e engrandece a realidade que sempre foi mais ou menos diminuta ("O pequeno território ibérico, que nunca chegou a ser verdadeiramente uma grande potência").

Para além da importância efectiva de D. João II e da «viragem significativa» que representou o seu reinado, importa realçar como a reflexão sobre um momento decisivo da história nacional é, desde logo, uma des-realização do real e a produção de um sonho, sonho esse que acaba por ser o padrão contra o qual as gerações seguintes vão ser obrigadas a confrontar-se e a medir-se. A uma imagem hiperbólica do reinado de D. João II, a que se aliavam e continuaram a aliar outras imagens hiperbólicas de reinados anteriores, imagens referentes a um passado irrecuperável e não testemunhável, contrapunha-se e contrapõe-se a realidade efectiva, com a sua pequenez, a miséria geral, as elites prepotentes, egoístas e mais ou menos incultas, o estado de dependência e de impotência da maioria da população. A clivagem entre a imaginação sonâmbula do passado e o peso de cada um dos presentes, que se foram vivendo no devir da história, conduziu a uma patologia da vontade.

O ideal que se persegue em Portugal é de tal maneira elevado que a vontade, impotente para o realizar, se sente fragilizada. Nessa fragilidade, ela apenas encontra forças para subsistir, subsistência essa tão bem caracterizada na expressão popular "a gente desenrasca-se". Ninguém sabe, porém, que o ideal é o produto do delírio da razão. As próprias elites, mesmo se aparentemente cultas, acabam por ser o veículo fundamental desse delírio. Veja-se, por exemplo, as ilusões que perpassam na cabeça das elites políticas, das centrais às municipais, e que se consubstanciam em obras faraónicas e desenquadradas das reais necessidades do país e dos concelhos. No fundo, a vaidade dos indivíduos encontra um sólido álibi numa mitologia nacional construída desde há muito. Para além destas elites, que realizam os seus delírios com o dinheiro vindo dos impostos pagos pelos outros e, no caso actual, da União Europeia, a sociedade vive esmagada pelo sonho e incapaz de recentrar a sua vontade em formas de vida realizáveis e à medida das possibilidades de cada momento.

Os portugueses são vítimas de um excesso de imaginação, de uma imaginação presa ao passado. Como essa imaginação não é confrontada com o princípio da razão, ela é incapaz de olhar o presente e fazer dele a matéria da vida. A presença da realidade só pode, então, assustar-nos.

4 comentários:

  1. A História pode (ou não)repetir-se, mas apenas enquanto se conseguir encontrar "matéria" que o permita.
    Lamentavelmente, penso que já não será o nosso caso. Acabou-se...

    Abraço

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  2. Custa-me aceitar que os portugueses sejam, hoje, vítimas da imaginação, diria que são vítimas da ausência da imaginação, imitar não é imaginar.
    Ao referir-se ao século XV,XVI, talvez, sim, os portugueses partiram à espera de encontrar e defrontar monstros e mirabilia, era essa a literatura que os enquadrava, a própria ciência estava contaminada pela imaginação, ao regressarem trouxeram uma espécie de realidade mais bizarra do que as próprias narrativas.
    Entre estes dois lugares, o portugal continental e o portugal para além do mar, existiu sempre um conflito gerado pelo desconhecimento, um confronto entre um mundo aberto onde tudo seria possível e um mundo fechado onde nada parecia possível, este confronto manteve-se(ver por exemplo a forma como os regressados de àfrica, no pós 25 de abril, descrevem o portugal da europa).
    A imaginação não é o devaneio, o devaneio e irrealizável, a imaginação pode transformar-se em realidade, gerar imagens é uma forma de existir, o puro devaneio é uma forma de se ausentar.

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    1. Kant distingue entre imaginação reprodutora e imaginação produtora. Diria que a imaginação criativa, a que permite instituir outra realidade é a imaginação produtora. A imaginação do devaneio, a imaginação sonêmbulo, tem um mero carácter reprodutor (há aqui um certo desvio em relação a Kant), mas uma reprodução pervertida pelo sonambulismo, pelo excesso de reminiscência.

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