Öyvind Fahlström - Mitos como realidade
[Recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo. Post de 20 de
Fevereiro de 2010]
Esta imagem grandiosa de D. João II, apesar dos espinhos de que sempre
se revestiu a sua evocação para alguns, remonta ao século XVI e às crónicas de
Rui de Pina e de Garcia de Resende, tal como, aliás, a ideia de um tempo
dourado, insistentemente retomada pela posteridade próxima e distante. No
entanto, a ponderação crítica do que hoje se conhece sobre o tema obriga,
naturalmente, a matizar a imagem corrente dos anos de ouro do reino de Portugal.
Em boa medida, como antes se sublinhou, o pioneirismo da expansão portuguesa
para territórios remotos explica-se pela pobreza relativa do reino e pela
distância face aos centros de poder da Europa da época. O pequeno território
ibérico, que nunca chegou a ser verdadeiramente uma grande potência, teve
sobretudo margem de manobra no fim do século XV e no princípio do século XVI,
isto é, nos anos anteriores à estabilização de potências europeias de uma outra
escala, como foram as grandes monarquias dos Valois, em França, e dos Habsburgo,
senhores de territórios por toda a Europa. [Nuno Gonçalo Monteiro, (2009).
"Idade Moderna (Séculos XV-XVIII)", in Rui Ramos, Bernardo
Vasconcelos e Sousa e Nuno Gonçalo Monteiro, História de Portugal. Lisboa: A
Esfera dos Livros, pp. 199-200]
Em primeiro lugar, refira-se o confronto entre o processo de mitificação do reinado de D. João II, (1455-1495) iniciado já pelos cronistas Rui de Pina (1440-1522) e Garcia de Resende (1470-1536), e a história crítica, a qual se sente obrigada "a matizar a imagem corrente dos anos de ouro do reino de Portugal." Esta imagem dilatada da nossa realidade, uma espécie de idade de ouro à qual se reporta continuamente o sentimento de decadência nacional, é um produto onírico. A sua construção não provém da análise racional dos factos mas de processos fundados na imaginação criadora que recria e engrandece a realidade que sempre foi mais ou menos diminuta ("O pequeno território ibérico, que nunca chegou a ser verdadeiramente uma grande potência").
Para além da importância efectiva de D. João II e da «viragem significativa»
que representou o seu reinado, importa realçar como a reflexão sobre um momento
decisivo da história nacional é, desde logo, uma des-realização do real e a
produção de um sonho, sonho esse que acaba por ser o padrão contra o qual as
gerações seguintes vão ser obrigadas a confrontar-se e a medir-se. A uma imagem
hiperbólica do reinado de D. João II, a que se aliavam e continuaram a aliar
outras imagens hiperbólicas de reinados anteriores, imagens referentes a um
passado irrecuperável e não testemunhável, contrapunha-se e contrapõe-se a
realidade efectiva, com a sua pequenez, a miséria geral, as elites prepotentes,
egoístas e mais ou menos incultas, o estado de dependência e de impotência da
maioria da população. A clivagem entre a imaginação sonâmbula do passado e o
peso de cada um dos presentes, que se foram vivendo no devir da história,
conduziu a uma patologia da vontade.
O ideal que se persegue em Portugal é de tal maneira elevado que a
vontade, impotente para o realizar, se sente fragilizada. Nessa fragilidade,
ela apenas encontra forças para subsistir, subsistência essa tão bem caracterizada
na expressão popular "a gente desenrasca-se". Ninguém sabe, porém,
que o ideal é o produto do delírio da razão. As próprias elites, mesmo se
aparentemente cultas, acabam por ser o veículo fundamental desse delírio.
Veja-se, por exemplo, as ilusões que perpassam na cabeça das elites políticas,
das centrais às municipais, e que se consubstanciam em obras faraónicas e desenquadradas
das reais necessidades do país e dos concelhos. No fundo, a vaidade dos
indivíduos encontra um sólido álibi numa mitologia nacional construída desde há
muito. Para além destas elites, que realizam os seus delírios com o dinheiro
vindo dos impostos pagos pelos outros e, no caso actual, da União Europeia, a
sociedade vive esmagada pelo sonho e incapaz de recentrar a sua vontade em
formas de vida realizáveis e à medida das possibilidades de cada momento.
Os portugueses são vítimas de um excesso de imaginação, de uma
imaginação presa ao passado. Como essa imaginação não é confrontada com o
princípio da razão, ela é incapaz de olhar o presente e fazer dele a matéria da
vida. A presença da realidade só pode, então, assustar-nos.
A História pode (ou não)repetir-se, mas apenas enquanto se conseguir encontrar "matéria" que o permita.
ResponderEliminarLamentavelmente, penso que já não será o nosso caso. Acabou-se...
Abraço
Completamente de acordo. Acabou-se mesmo.
EliminarAbraço
Custa-me aceitar que os portugueses sejam, hoje, vítimas da imaginação, diria que são vítimas da ausência da imaginação, imitar não é imaginar.
ResponderEliminarAo referir-se ao século XV,XVI, talvez, sim, os portugueses partiram à espera de encontrar e defrontar monstros e mirabilia, era essa a literatura que os enquadrava, a própria ciência estava contaminada pela imaginação, ao regressarem trouxeram uma espécie de realidade mais bizarra do que as próprias narrativas.
Entre estes dois lugares, o portugal continental e o portugal para além do mar, existiu sempre um conflito gerado pelo desconhecimento, um confronto entre um mundo aberto onde tudo seria possível e um mundo fechado onde nada parecia possível, este confronto manteve-se(ver por exemplo a forma como os regressados de àfrica, no pós 25 de abril, descrevem o portugal da europa).
A imaginação não é o devaneio, o devaneio e irrealizável, a imaginação pode transformar-se em realidade, gerar imagens é uma forma de existir, o puro devaneio é uma forma de se ausentar.
Kant distingue entre imaginação reprodutora e imaginação produtora. Diria que a imaginação criativa, a que permite instituir outra realidade é a imaginação produtora. A imaginação do devaneio, a imaginação sonêmbulo, tem um mero carácter reprodutor (há aqui um certo desvio em relação a Kant), mas uma reprodução pervertida pelo sonambulismo, pelo excesso de reminiscência.
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