De súbito, calou-se todo o argumentário anticientífico sobre
as vacinas. Perante a pandemia associada ao COVID 19, anseia-se que a ciência
responda com brevidade e encontre uma vacine que possa ajudar a humanidade a
viver com o novo perigo. Os movimentos anticientíficos têm crescido nos últimos
tempos e são uma ameaça real à vida dos seres humanos. Enquanto as coisas ficam
em patetices como a terra plana, é possível rir. Quando, porém, tocam em
assuntos relacionados com a vida e a morte, não há riso que valha. Nestes
movimentos contra a ciência podem existir, entre outras, motivações associadas
a um regresso a uma imaginária pureza da ordem natural e motivações religiosas,
que vêem na ciência uma afronta ao divino ou que julgam que uma fé profunda
bastará para lidar com os males do mundo.
A ordem natural como medida daquilo que é correcto ou
incorrecto fazer é uma perspectiva muito em voga nos círculos new age. Assenta na negação dos perigos
que a própria natureza esconde para os seres humanos e faz uma leitura da
humanidade como sendo apenas uma espécie entre outras. Foi o facto, porém, do
homem ter tido a capacidade de se distanciar da natureza e ter criado um mundo
artificial a partir dessa natureza que tornou possível a persistência da
humanidade sobre a Terra. Desse mundo artificial fazem parte as técnicas, os
saberes científicos, os valores e as próprias religiões. Tudo isso foi uma
estratégia de afirmação e defesa da humanidade perante uma natureza muito longe
de lhe ser benévola.
Certas correntes religiosas julgam que os homens apenas
devem confiar na fé, mesmo em assuntos que não se relacionem com questões de
religião. A ciência seria então um desafio à ordem e à vontade divinas. No
entanto, nem todas as religiões têm esta perigosa posição e a Igreja Católica,
por exemplo, há muito que descobriu, ou sempre soube, que fé e razão se devem
conjugar e que as descobertas científicas, produtos da razão natural dos
homens, devem ser tidas em consideração. Considera mesmo como pecado grave os
homens desprezarem a informação científica, aventurando-se na existência sem a
tomar em consideração. Pecado pois, ao desprezar o conhecimento trazido pela
razão dada ao homem por Deus, estão a desafiá-Lo a provar a sua omnipotência
para os salvar daquilo em que estão metidos.
Nesta hora terrível que estamos a viver, é tempo de perceber
que não devemos desprezar o que a razão e a ciência produzem para ajudar a
humanidade a habitar com mais segurança este planeta. Todo o fanatismo –
naturalista ou fideísta – é um perigo para a existência da humanidade.
[A minha crónica de Abril em A Barca]
Mais um texto muito bom do meu caro amigo.
ResponderEliminarLembro-me do eclesiástico e físico famoso, o Abade George Lemaitre, um dos autores da teoria do Big Bang, que se refere à existência de duas verdades, a da ciência e a da religião, e acrescenta que, quando se está a fazer o trabalho em Ciência, não há necessidade de meter Deus ao barulho, não que Ele seja prejudicial, mas apenas porque é inútil.
Um abraço
E consta que aconselhou o Papa a refrear o entusiasmo sobre a possibilidade de ver o Big Bang como o momento da criação.
EliminarMuito obrigado.
Abraço
Acabei de encontrar o seu blogue. Belo texto.
ResponderEliminarFaz-me lembrar de um poema de Emily Dickinson:
Faith is a fine invention
For gentlemen who see;
But microscopes are prudent
In an emergency!
E atenção que não menosprezo a fé nem o seu objecto.
Muito obrigado. Vivemos um tempo em que é preciso proteger a razão e o seu papel no mundo e na sociedade, o que nem sempre é fácil. E, claro, microscopes are prudente / In an emergency. Um belo poema.
Eliminar