quinta-feira, 2 de abril de 2020

Razão e Ciência


De súbito, calou-se todo o argumentário anticientífico sobre as vacinas. Perante a pandemia associada ao COVID 19, anseia-se que a ciência responda com brevidade e encontre uma vacine que possa ajudar a humanidade a viver com o novo perigo. Os movimentos anticientíficos têm crescido nos últimos tempos e são uma ameaça real à vida dos seres humanos. Enquanto as coisas ficam em patetices como a terra plana, é possível rir. Quando, porém, tocam em assuntos relacionados com a vida e a morte, não há riso que valha. Nestes movimentos contra a ciência podem existir, entre outras, motivações associadas a um regresso a uma imaginária pureza da ordem natural e motivações religiosas, que vêem na ciência uma afronta ao divino ou que julgam que uma fé profunda bastará para lidar com os males do mundo.

A ordem natural como medida daquilo que é correcto ou incorrecto fazer é uma perspectiva muito em voga nos círculos new age. Assenta na negação dos perigos que a própria natureza esconde para os seres humanos e faz uma leitura da humanidade como sendo apenas uma espécie entre outras. Foi o facto, porém, do homem ter tido a capacidade de se distanciar da natureza e ter criado um mundo artificial a partir dessa natureza que tornou possível a persistência da humanidade sobre a Terra. Desse mundo artificial fazem parte as técnicas, os saberes científicos, os valores e as próprias religiões. Tudo isso foi uma estratégia de afirmação e defesa da humanidade perante uma natureza muito longe de lhe ser benévola.

Certas correntes religiosas julgam que os homens apenas devem confiar na fé, mesmo em assuntos que não se relacionem com questões de religião. A ciência seria então um desafio à ordem e à vontade divinas. No entanto, nem todas as religiões têm esta perigosa posição e a Igreja Católica, por exemplo, há muito que descobriu, ou sempre soube, que fé e razão se devem conjugar e que as descobertas científicas, produtos da razão natural dos homens, devem ser tidas em consideração. Considera mesmo como pecado grave os homens desprezarem a informação científica, aventurando-se na existência sem a tomar em consideração. Pecado pois, ao desprezar o conhecimento trazido pela razão dada ao homem por Deus, estão a desafiá-Lo a provar a sua omnipotência para os salvar daquilo em que estão metidos.

Nesta hora terrível que estamos a viver, é tempo de perceber que não devemos desprezar o que a razão e a ciência produzem para ajudar a humanidade a habitar com mais segurança este planeta. Todo o fanatismo – naturalista ou fideísta – é um perigo para a existência da humanidade.

[A minha crónica de Abril em A Barca]

4 comentários:

  1. Mais um texto muito bom do meu caro amigo.

    Lembro-me do eclesiástico e físico famoso, o Abade George Lemaitre, um dos autores da teoria do Big Bang, que se refere à existência de duas verdades, a da ciência e a da religião, e acrescenta que, quando se está a fazer o trabalho em Ciência, não há necessidade de meter Deus ao barulho, não que Ele seja prejudicial, mas apenas porque é inútil.

    Um abraço

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    1. E consta que aconselhou o Papa a refrear o entusiasmo sobre a possibilidade de ver o Big Bang como o momento da criação.

      Muito obrigado.

      Abraço

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  2. Acabei de encontrar o seu blogue. Belo texto.

    Faz-me lembrar de um poema de Emily Dickinson:

    Faith is a fine invention
    For gentlemen who see;
    But microscopes are prudent
    In an emergency!

    E atenção que não menosprezo a fé nem o seu objecto.

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    1. Muito obrigado. Vivemos um tempo em que é preciso proteger a razão e o seu papel no mundo e na sociedade, o que nem sempre é fácil. E, claro, microscopes are prudente / In an emergency. Um belo poema.

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