Num ensaio, A pandemia
e o capitalismo numérico, no Público de Domingo de Páscoa, o filósofo José
Gil afirma que, durante todo este tempo de confinamento, “não se conceberam nem
novos valores éticos, nem novos programas económicos ou práticas políticas”. Deixo de lado a economia e a política e
centro-me na ética. Dois valores morais estruturantes da vida em comunidade são
a proximidade – por exemplo, no sentido dado na expressão amor ao próximo – e a
confiança. Esta é um valor estrutural em todas as sociedades e, por maioria de
razões numa sociedade fundada na economia de mercado. O respeito, senão o amor,
ao próximo, apesar da crescente afirmação de egoísmos viscerais e agressivos,
continuava a ser um valor e a proximidade física entre seres humanos era vista
como forma de expressar e realizar esse valor.
De um momento para o outro, a confiança deu lugar à
desconfiança relativamente aos outros e a si próprio. Será que o vizinho que
posso encontrar no elevador estará contaminado? Será que, ao ter de ir à rua,
transporto para casa o vírus? A confiança espontânea que havia nas
inter-relações entre conhecidos e na relação consigo próprio desapareceu.
Viseiras, luvas, lavagem de mãos, desinfecção permanente, tudo isso são sinais
de que a confiança se tornou impossível. Qualquer um agora pode ser o portador
da minha morte e eu a de qualquer um. A proximidade tornou-se um valor
negativo. Estar próximo do outro é poder fazer-lhe mal ou receber o mal que dele
pode vir. O respeito, senão o amor, exprime-se pela distância, por uma dinâmica
de afastamento, não pela proximidade e pela partilha do espaço entre pessoas,
cujos corpos se tornaram universalmente indesejáveis, numa irónica facécia ao
deus Eros.
Pode ser verdade que, como pretende José Gil, não se
conceberam novos valores éticos, mas a metamorfose sofrida nestes dias pelos
pares confiança/desconfiança e próximo/afastado são reveladores de que podemos estar na iminência de uma mutação
ética. Começará na sociedade, onde as regras da moralidade comum se estão já
adaptar às novas exigências. Tudo dependerá do tempo que se leve a solucionar o
problema. Se a situação se prolongar, se novos hábitos vierem a instalar-se
para que possamos sobreviver, podemos estar
perante uma novidade ética. A desconfiança e o afastamento tornar-se-ão
deveres morais e a nova forma de habitar o mundo. Como se poderá estruturar a
vida em comunidade, desde a família ao espaço público, num ambiente em que se
deve cultivar a desconfiança e o afastamento, essa é a grande incógnita.
[A minha crónica no Jornal Torrejano]
[A minha crónica no Jornal Torrejano]
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.