Kamala Harris sempre me pareceu uma má candidata. Porque era mulher e porque não era branca? Também por isso, mas essa não é a questão central. De facto, Kamala Harris é tudo aquilo que o eleitor de Trump odeia. Sabemos que ele não odeia a incompetência; odeia a virtude, a vida conseguida, a capacidade de afirmação. Kamala Harris é uma mulher que não veio das elites norte-americanas, mas é refinada e transpira superioridade, apesar da simpatia. Kamala Harris foi um espelho em que milhões de eleitores norte-americanos viram a sua própria derrota existencial. Ela conseguiu aquilo que muitos desejavam e não foram capazes. Não se trata de dinheiro, mas de classe. Os eleitores norte-americanos caíram uma vez com Obama; não caíram segunda com Harris. Uma parte da derrota da candidata democrata deve-se à pura inveja e ao ressentimento que a sua presença gera.
Harris, como
Obama, são casos claros de uma cultura meritocrática, fundada em concepções
liberais da sociedade. O filósofo norte-americano Michael J. Sandel escreveu,
em 2020, um livro com o curioso título A Tirania do Mérito. Ele
argumenta que esta tirania está a corroer as nossas sociedades e a empurrá-las
para o populismo. As elites meritocráticas estão a afastar-se do homem comum, e
esse afastamento, juntamente com a quebra do elevador social, gera um enorme
ressentimento que se manifesta nas cabines de voto. Kamala Harris era uma má
candidata – isso não significa que seria uma má presidente; são coisas
diferentes – porque, quisesse ou não, ela era a face dessa elite que atormenta
as entranhas do homem comum. Ela perde porque foi virtuosa na sua vida, perde
porque é um caso de mérito. Ora, os democratas deviam ter lido com muita
atenção o livro de Sandel. O resultado é o que se viu e o que se verá no
futuro.
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