sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Hinos marítimos (ii)

Ana Hatherly, O Mar, 1971 (Gulbenkian)

Balança-se o líquido viscoso

entre as carumas brandas do vento,

um insecto ígneo a cintilar na noite,

preso na areia, uma dor sem nome,

a página pura rasurada pelo tempo.

 

Vieram, na maresia da aurora, marinheiros.

De uma língua rasa fizeram barcos,

enfrentaram o ondular das ondas,

o uivo da memória,

a vida quebrada na gramática do naufrágio.

 

Mareantes perdidos no visco marítimo,

algas fétidas da proa ao convés.

As palavras ecoam na fragilidade do coração,

sombras suspensas na face.

Cansados das águas, plantaram palmeiras,

árvores raquíticas suspensas nas marés.

Mastros altivos chegam na aurora,

o silêncio arcaico coberto pela névoa.

 

Sobre a voz do cais cantam sirenes,

mulheres de preto pingam pelas ruas,

o turbilhão de peixes arfa nas redes,

a noite como um pássaro pelo chão.

 

Choram sobre o mar as mulheres.

Os marinheiros, cantando, zarparam,

espera-os a voz ébria dos portos longínquos,

a seda esquiva de outras mulheres,

escorraçadas na agrura do sul,

tisnadas pelo tumulto do cansaço.

 

(1993)

[Conjunto de três poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]


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