Joan-Pere Viladecans - Fábula (1999)
Quando a face lhe floriu
estava rubra, tão rubra, mais que a papoila pelo vento balanceada, mais que sangue
a correr por veias e artérias, para desaguar no coração, logo o devolvia ao
périplo que irrigava o corpo e alimentava a mecânica dos músculos, a sabedoria
do cérebro, o alento com que a vida se desbravava. Um sangue de fogo e aguarrás,
a essência de terebentina, que a tudo diluía. O fogo de sangue dissolvia a
dúvida e a esperança, consumia, no cume do monte, a caruma pela vida ali
amontoada. Inocente ainda era e na inocência afogueada desenhava fábulas em
papel pardo. Noutros dias, já esquecida a fábula, alguém usava o papel, mais
pardo já, para ensopar óleo, vinho, pingos de azeite e logo o deitar fora, como
se nele houvera moléstia, a eminência de uma contaminação.
Quando na rua gritavam, se
gritos se ouviam, eram quimeras o que desenhava, a cabeça de leão, um leão
colérico, hematoso, a urrar, em desespero de monstro, em tique de selvagem. Do
corpo, tão quimérico, uma cabra descia, se da cauda um fogo se desatava,
alastravas pela erva seca, assediava árvores e arbustos, o esplendor da noite
tomada pelo sol. Eram então dias de fervor e no jardim as rosas murchavam,
enquanto os caminhantes que caminham no caminho, saídos dos dedos que
desenhavam, semeavam luzes e terrores, folhas murchas entre ervas secas pelo
fogo ou pelo vento, da serra caía, frio e invernoso mesmo se quente era o
verão. Não havia, naqueles dias, procissões, nem touradas, nem gente a uivar
pela estrada.
Apenas uma pele
delicadíssima escondia os dedos, e luzia, cobria de vozes a solidão. Inocente
ainda era, ou voltara a ser, e compunha palavras, as sílabas delicadas e em
cada letra punha uma pedra de cinza e uma mágoa fatigada. E assim começava uma
nova fábula e um tempo, mais presente e mais longe do começo, começava, nos
seus olhos histriónicos, desejosos de ver novos mundos no cansaço dos seus
dedos. E já não eram quimeras que vinham, mas cavalos alados, faunos ou, então,
planetas inóspitos que aguardavam o murmúrio divino, aquele sussurro que do
lodo tiraria seres vivos e os semearia por casa desabitada para que pudessem
desejar e, cumulados de desejos, entrarem na peçonha da vida, para dela triunfarem
levados no barco ambulante da morte.
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