quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Livro do Êxodo - 24. O inventor de fábulas

Joan-Pere Viladecans - Fábula (1999)

Quando a face lhe floriu estava rubra, tão rubra, mais que a papoila pelo vento balanceada, mais que sangue a correr por veias e artérias, para desaguar no coração, logo o devolvia ao périplo que irrigava o corpo e alimentava a mecânica dos músculos, a sabedoria do cérebro, o alento com que a vida se desbravava. Um sangue de fogo e aguarrás, a essência de terebentina, que a tudo diluía. O fogo de sangue dissolvia a dúvida e a esperança, consumia, no cume do monte, a caruma pela vida ali amontoada. Inocente ainda era e na inocência afogueada desenhava fábulas em papel pardo. Noutros dias, já esquecida a fábula, alguém usava o papel, mais pardo já, para ensopar óleo, vinho, pingos de azeite e logo o deitar fora, como se nele houvera moléstia, a eminência de uma contaminação.

Quando na rua gritavam, se gritos se ouviam, eram quimeras o que desenhava, a cabeça de leão, um leão colérico, hematoso, a urrar, em desespero de monstro, em tique de selvagem. Do corpo, tão quimérico, uma cabra descia, se da cauda um fogo se desatava, alastravas pela erva seca, assediava árvores e arbustos, o esplendor da noite tomada pelo sol. Eram então dias de fervor e no jardim as rosas murchavam, enquanto os caminhantes que caminham no caminho, saídos dos dedos que desenhavam, semeavam luzes e terrores, folhas murchas entre ervas secas pelo fogo ou pelo vento, da serra caía, frio e invernoso mesmo se quente era o verão. Não havia, naqueles dias, procissões, nem touradas, nem gente a uivar pela estrada.

Apenas uma pele delicadíssima escondia os dedos, e luzia, cobria de vozes a solidão. Inocente ainda era, ou voltara a ser, e compunha palavras, as sílabas delicadas e em cada letra punha uma pedra de cinza e uma mágoa fatigada. E assim começava uma nova fábula e um tempo, mais presente e mais longe do começo, começava, nos seus olhos histriónicos, desejosos de ver novos mundos no cansaço dos seus dedos. E já não eram quimeras que vinham, mas cavalos alados, faunos ou, então, planetas inóspitos que aguardavam o murmúrio divino, aquele sussurro que do lodo tiraria seres vivos e os semearia por casa desabitada para que pudessem desejar e, cumulados de desejos, entrarem na peçonha da vida, para dela triunfarem levados no barco ambulante da morte.

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