segunda-feira, 13 de maio de 2024

Fritz von Unruh, O Caminho do Sacrifício

Fritz von Unruh (1895-1970) pertencia a uma família da alta nobreza prussiana, ligada ao mundo militar. Filho de um general, também ele enveredou pela carreira das armas, que abandonou em 1911, para se dedicar à literatura, mas à qual regressou em 1914 com o desencadear da primeira grande guerra. O romance O Caminho do Sacrifício começa por ser uma obra encomendada pela hierarquia militar alemã, para exaltar o espírito heróico alemão numa crónica da batalha de Verdun, onde o autor participa. O romance tem duas versões, uma primeira, ainda no espírito da exaltação patriótica, e uma segunda, a definitiva publicada em 1919, portanto, já depois da guerra acabar. Esta versão é o resultado da evolução do autor, a partir de 1916, em direcção ao pacifismo, influenciado pelo espectáculo de uma guerra onde o combatente perde a sua individualidade e se funde na massa que se afoga no sangue provocado pelo desencontro entre o poder técnico das novas armas e as concepções estratégicas tradicionais. Em vez da exaltação patriótica das virtudes militares, está-se perante uma viagem para o calvário, para o lugar do sacrifício, embora sem que se percebe para que fins salvíficos servirá a expiação daqueles homens.

A orientação expressionista do romance afasta-o das visões realistas de muitos romances focados na primeira grande guerra. O pathos linguístico é uma estratégia – não poucas vezes lírica – para tornar manifesto o absurdo em que aqueles homens vivem. A obra está dividida em quatro partes: (1) A aproximação; (2) As trincheiras; (3) O assalto; (4) O sacrifício. Esta composição sugere uma tragédia em quatro actos, nos quais se assiste não apenas à aproximação e chegada ao centro do combate, mas também à metamorfoses da consciência dos combatentes. O romance desenha um caminho que vai desde o fervor patriótico que conduz os homens para a guerra até ao confronto com a morte e a ausência de significado dessa morte. É plausível pensar que essa metamorfose das consciências seja a do próprio autor, o seu caminho de militar patriótico que retorna ao serviço para ir combater, isto é, servir os desígnios da nação, até ao pacifista em que se torna, perante a experiência absurda da batalha de Verdun.

Na primeira parte, A aproximação, é possível ler o discurso de um capitão para um voluntário: À saúde de todos os voluntários! Tive sob o meu comando uma companhia de estudantes. A flor da juventude foi arrastada pela gloriosa tempestade do povo, como uma explosão de júbilo primaveril. Quando o nosso canto se extinguiu, os campos resplendiam de brancura e claridade. Enterrámos belos corpos. Mas sentíamos: o fruto maduro há-de vir um dia. Será grande a colheita! A poeticidade com que a morte é descrita, apesar da ironia que nela já se faz sentir, culmina com a expectativa de uma grande colheita, como se os mortos fossem sementes que, ao morrer, se multiplicariam sem fim. Ou quando um dos militares escreve para a mulher: Sabes o que este mar significa para o combatente? A ofensiva, pressentimo-la; mas e para lá da procela? Minha querida, adivinhas o que me atrai lá longe sob o sol benfazejo? Tu sabes. Oh, pudesse eu antes beijar a penugem dourada do meu bebé! A liberdade por que lutamos, há-de ele respirá-la. Deus abençoe o teu corpo; se for rapaz, cria-o livre e justo. Também aqui se desenha um princípio de esperança, a crença que haverá um além da guerra e uma a justiça que esta, supostamente, trará consigo.

A obra conta a história de um grupo de militares que são figuras arquetípicas de todos aqueles que fazem o caminho da retaguarda para a frente. A esperança move-os. O decorrer da acção, a chegada ao lugar de combate vai desligar a conexão ideológica entre esperança e guerra. A esperança inicial torna-se, na parte final, a constatação de que toda a guerra é um exercício niilista e não o lugar onde se manifesta o valor supremo da heroicidade: Quando a manhã pôs a nu o horror do campo de batalha, Fips ergueu-se do seu buraco de granada e mediu com o olhar a imensidade da mutilação: «Salvo o devido respeito pelos nossos veneráveis ideais, pergunto: porquê? Primeiro a aproximação furtiva, depois um alarido extraordinário e - passado tudo isso - que ficou? Praticamente nada, além de uma assembleia muda onde já ninguém tem voz. Porque tombastes? Por Verdun? Permiti-me então que vos faça uma declaração póstuma: teria preferido que Verdun caísse e não vós!» A ironia é agora tenebrosa, nela não existe qualquer esperança, nem se vê naqueles mortos a semente de uma grande colheita, nem são pintados como paladinos da liberdade. São apenas mortos que perderam a voz numa assembleia muda.

Fritz von Unruh rompe, no seu romance, com o elo entre o sacrifício e a salvação. Fá-lo recorrendo a estratégias narrativas diversas, pondo na boca das personagens discursos que vão do lirismo poético à reflexão filosofante, por vezes, raiando a mística. Esta combinação discursiva de poesia, filosofia e mística é o operador que permite dar a ver a guerra na sua crueza, que a mostra não como uma grande cerimónia religiosa de superação de si e de salvação, mas o exercício de potências maléficas que se manifestam na ausência de sentido daqueles actos que levam a morte a inimigos que, na verdade, nunca fizeram mal a quem os combate. O horizonte do sacrifício na guerra, naquela guerra em particular, é a expiação de um mal de que se desconhece a real origem, pura perdição do corpo entrega à morte e da alma que perdeu a capacidade de encontrar sentido entre aquilo que não o tinha. 

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