domingo, 19 de maio de 2024

Friedrich de la Motte Fouqué, Ondina

A publicação de Ondina data de 1811. Trata-se de um romance do escritor alemão Friedrich de la Motte Fouqué (1777-1843). Na verdade, é uma espécie de conto de fadas, cuja heroína é um espírito elementar das águas, uma ninfa. É também a história de um triângulo amoroso, passada num tempo indeterminado, mas cujos indícios narrativos parecem apontar para a Idade Média, esse tempo em que havia cavaleiros que disputavam torneios, como Huldbrand, outra das personagens principais da história, e poderosos duques que detinham o poder em certas áreas. O autor insere-se no romantismo e este conto de fadas tem, claramente, motivações românticas. A obra teve múltiplas adaptações para ópera, de onde se podem destacar as de E. T. A. Hofmann, Piotr Tchaikovsky, Antonín Dvořák e Sergei Prokifiev. Contudo, a influência desta obra de La Motte Fouqué não se fica pela ópera. Música erudita, bailado, cinema, literatura, pintura e escultura são outras áreas em que diferentes artistas trabalharam sobre a história de Ondina.

<O primeiro grande tema da obra é a conquista da alma. A inspiração provém, talvez indirectamente, do ocultista Paracelso. Este afirmara, no Livros sobre as ninfas, que as ondinas poderiam ganhar uma alma imortal se se casassem com um ser humano. A questão, porém, pode ser mais do que uma história maravilhosa, onde se cruzam seres de mundos diferentes, como é o caso. É possível fazer uma leitura do romance como uma ilustração de um processo tipicamente humano. No homem, mais do que dada, a alma deveria ser conquistada e conquistada através do amor. Não é o cavaleiro Huldbrand, com quem Ondina casa, nem a rival e amiga de Ondina, Bertalda, que são os arquétipos humanos, mas a ninfa, o espírito das águas. Como ela, todos os seres humanos provêm desse mundo elementar das águas e, ao nascer, abandonam a existência intra-uterina e são lançados no mundo para conquistarem uma alma imortal. Esta leitura do romance, permite contrastar a visão pagã da alma e a visão cristã, na qual a alma imortal é dada, mas precisa de ser salva. De um lado, há uma alma que pode alcançar ou a beatitude ou o castigo, ambos eternos. No outro, a imortalidade da alma é uma conquista a realizar. É plausível pensar que os antigos romances de cavalaria tratavam, através de aventuras alegóricas, essa conquista interior de uma alma que disporia o indivíduo para a imortalidade.

<O segundo grande tema da obra está relacionado com a natureza do compromisso amoroso. O casamento de Huldbrand com Ondina não era apenas uma modalidade de compromisso que fornecia a esta a possibilidade de conquistar uma alma imortal. Trazia para o cavaleiro um perigo mortal. A fidelidade está ligada a um pacto que não poderia ser dissolvido. A trama romanesca vai girar em torno de um triângulo amoroso. Huldbrand é impelido para o lugar onde encontra Ondina pelos desejos de uma bela dama, filha adoptiva de uns duques, Bertalda. Ao deparar com a ninfa, apaixona-se por esta e casa com ela. Quando retorna casado, a figura de Bertalda não desaparece. Pelo contrário, acompanha o casal, tornando-se amiga da rival. Ondina tenta evitar que o mundo elementar interfira na sua vida e na do marido, que se vai deixando reconquistar por Bertalda. É um difícil equilíbrio entre as paixões amorosas e os deveres de fidelidade, tudo isso mediado pela presença do mundo elementar e de um dos seus representantes, um espírito das águas, tio de Ondina, que não vê com bons olhos a atracção entre Huldbrand e Bertalda, estando sempre disposto a vingar a sobrinha. Quando Huldbrand, conhecedor já de que Ondina não seria humana, a repudia, ela volta para o seu mundo, mas a partir daí o cavaleiro corre um grande e decisivo risco, se casar com Bertalda, sem que Ondina tenha morrido.

Este conto maravilhoso é uma exploração romanesca da condição humana, uma viagem à sua constituição, aos elementos que fazem de um ser vindo do mundo líquido intra-uterino um ser humano, com uma alma imortal, isto é, com um horizonte existencial que está para além da mortalidade do animal humano. Esta exploração simbólica da ontologia humana está intimamente relacionada com a questionação do amor, com a análise poética dos laços fundamentais que ligam dois seres, os quais, ao casarem, não estabelecem apenas um pacto civil, um contrato para partilha da vida e dos prazeres eróticos, que, reciprocamente, marido e mulher permitirão ao cônjuge. O casamento é uma alteração ontológica daqueles que se casam, os quais, na verdade, se devem fundir e ser apenas um. A infidelidade não é uma mera quebra de um contrato, mas uma dissolução existencial do ser que tinha emergido do casamento. E aqui, a obra de La Motte Fouqué desagua na torrente romanesca ocidental em que o amor e a morte surgem intimamente ligados. 

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