O tema da honra está presente no último romance de Eça de Queiroz
publicado em vida, A Ilustra Casa de Ramires, no qual o protagonista, um
aristocrata, confronta a sua lassidão moral com o culto bravio e sanguinolento da
honra dos seus longínquos antepassados. Em Alves & C.ª, romance
póstumo publicado em 1925, um quarto de século após a morte do autor, Eça
centra-se no mesmo tema, deslocando o ambiente social da velha aristocracia
para o seio da burguesia comercial ascendente na Lisboa dos finais do século
XIX. O caso gira em torno de um adultério e a questão da honra punha-se aos
olhos do marido traído. O sentimento de traição é levado ao paroxismo porque,
além da infidelidade conjugal, há também a traição de uma amizade e de uma
sociedade comercial, pois o amante de Ludovina, a mulher de Godofredo Alves,
era precisamente o Machado, rapaz mais novo, sócio talentoso da firma e amigo
íntimo de Godofredo, que o vira crescer e quase o educara.
A questão que Eça coloca no romance, ao fazê-lo girar em torno da honra, prende-se com a tensão entre uma sexualidade que transborda os limites do estipulado pelas convenções sociais e três instituições centrais da vida burguesa, o matrimónio, a amizade e a sociedade comercial, onde se conjugam os interesses materiais daqueles que se tornaram rivais. Serão as manobras de Eros, com a sua propensão para desestruturar o mundo e lançar a vida no caos, suficientes para pôr em causa instituições tão fundamentais para o mundo burguês triunfante? A expectativa seria que a descoberta por Godofredo, na sua casa e no dia do quarto aniversário do casamento, da sua Lulu nos braços do sócio Machado, levaria à destruição do casamento, ao fim de uma profunda e quase paternal amizade e, não menos importante, à desagregação da sociedade comercial.
Godofredo da Conceição Alves, o nome do personagem central do pequeno drama, é todo ele um programa narrativo. Aos banais apelidos, a mãe, senhora dada à leitura de romances, por certo românticos, antes de se dedicar ao culto do Senhos dos Passos, decidiu antepor um nome de outros tempos, um nome godo, como se ela quisesse ver no filho o aristocrata que ela não era. Esta ironia queirosiana é fundamental para a compreensão do romance. Perante o ultraje, Godofredo sente ânsias de lavar a honra em sangue, de matar o Machado ou de morrer ele, mas libertar-se assim do peso que o adultério da mulher lhe punha nos ombros. Depois de ideias e propostas bizarras, vai ter com dois amigos, um deles experiente em coisas da honra, para resolver o assunto. O que vai descobrindo, todavia, é que o caso não exigiria cometimentos tão drásticos. Os padrinhos de ambos os lados manobram até que se chegue à conclusão que nada há a fazer. Duelos relativos a questões de honra exigem mais que uma mera peripécia do deus Eros. Por exemplo, ser escarrado na face. Isso sim é grave para a honra de um homem.
A instituição da honra já não pertencia àquele mundo habitado por burgueses, era coisa de uma velha aristocracia que tinha desaparecido. Um qualquer Conceição Alves, mesmo que Godofredo, não tem honra a defender, até porque o motivo seria pura e simplesmente irrisório, num mundo em que as histórias de maridos traídos e mulheres adúlteras seria a norma. Eça liberta o Eros da sua relação com o sangue e a morte, mas não o faz como um pensador libertino. Pelo contrário, o importante é outra coisa. Importante é que o matrimónio não se desfaça, que as amizades permaneçam, apesar da intromissão da deslealdade, e que as sociedades comerciais prosperem. A honra, essa é uma coisa que não se deve intrometer no bom funcionamento das instituições burguesas. Godofredo, apesar do nome, não era um aristocrata. A vida, a sociedade, o Machado, a Ludovina e o seu coração exigem outra coisa dele, exigem que não tome a excepção como a regra e não desfaça o mundo laboriosamente tecido, um mundo apontado à prosperidade e às aparências, para que a vida decorra segundo a nova visão do mundo, a daqueles que já substituíram no comando das coisas a velha aristocracia, cujos valores são agora inúteis. A virtude central não é a honra, mas a prudência, pensada a partir do cálculo da utilidade dos actos.
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