Marc Chagall - The Poet or Half Past Three (1911-12)
Quando pisavam
os ladrilhos, abriam a boca e inalavam lentamente o ar, corriam com o olhar os
desfiladeiros de pedra e mata rasteira, sorriam. A noite deixara os últimos
vestígios, morrera nos braços esguios da aurora, tocados pelas folhas, o vento
as animava, e era uma ténue recordação a fugir diante dos olhos, animal bravio
do caçador se esconde. Não há regresso à terra de onde partiste, sussurraram ao
ouvido, quando a névoa, névoa iluminada por um sol indeciso, pairava sobre a
copa das casas, a cidade cobria. Mulheres, na sombra as havia, escutavam os
passos, portas fechadas, e um terror de pétalas rasgava como furúnculos a pele
do coração. Por vezes, deitavam-se sobre o pano verde das mesas de bilhar,
erguiam as abertas pernas para que alguém ao passar as tomasse e no desconcerto
as enchesse e ao útero, de tanta espera cansado, vida desse.
Amei ajuntando
os espelhos das mulheres para neles me rever, o sexo hirto, a carne a
chamar-me, a relva incendiada se abrasava. Quando respirava tudo me doía, mãos
e pernas, a língua, os lábios de tantos lábios tocar. Poeta ridículo, apedrejas
as palavras, feres a sintaxe, amontoas
as sílabas, pedras são, uma intifada o que de tuas mãos sai, disseram, ainda o
mosto fermentava, o leite coalhado já a envinagrar, verso a verso, histórias
entremeadas de outras histórias, água glaciar a correr na brancura do papel,
agora tingido de tinta incolor, de onde tudo parte, o som, o sentido, o sexo, o
sémen que semeia abismos no teu coração, feminino coração, delicada mão o
protege, se a mim, ridículo poeta, a amar me fora dado. Comecei com uma
variação para piano e orquestra, mas perdi do opus a numeração, e se ainda
reconstruo um incómodo pizzicato, a
memória recusa calar-se e então ladra na noite, ladra no poema, ladra como uma
loba esfaimada, as crias por alimentar, os rebanhos lá longe, cães de pedra os
guardam.
Ladrar, ladrar,
ladrar e depois vêm os uivos, fortes uivos, dos pulmões, mal respiram, saem,
vocábulos contra vocábulos, uma guerra civil alastra no campo da língua, gemem
moribundas as palavras, encrespam-se as ondas do mar e na lua, o luar o
anuncia, espelha-se a noite que nasce no ventre, no meu ventre, rugosos
intestinos, entranhas fétidas, o bandulho onde tudo desagua e de lá tudo vem.
Não há vísceras poéticas, apenas flores delicadas, como aquelas que minha mãe
ordenava no restrito espaço, jardim lhe chamava, onde eu corria, braços abertos,
as narinas a fumegar num céu riscado de corvos e de águias abertas sobre a
planície da solidão.
Não há na minha
terra choupos, salgueiros, os últimos carvalhos foram dizimados e as figueiras,
para a tua boca figos davam, são uma sombra inclinada para o chão de ladrilhos.
Nele, deitou-se a loba, as crias escanzeladas, e um poeta, ridículo poeta,
amontoa pedras feitas de letras, sílabas e sons vocálicos, gritos de horror no
som mecânico, roufenho som, do megafone: ao diabo a métrica, belzebu rima com
cu, ao diabo a rima. Deus expulsou-me do paraíso, não foi para que andasse, de
papel em papel, a compor metros, urdir rimas, sonetos ou redondilhas. Comecei
com uma variação para piano e orquestra, mas do opus perdi a numeração, quem quer saber de ciência assim funesta?
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