André Louis Derain - Natureza morta com cerejas (1938-39)
Uma palavra, uma
frase, apenas uma, e tudo na história natural das cerejas se inclina, em momento
de fadiga, para a verdade, o Verão a traz. A memória sangra, vinha pelo granizo
de Junho devastada, os cachos a romperem-se pela violência da pedra, o tépido
bago invadido pelo exército de gelo, uma legião de anjos infernais, dir-se-á,
do céu, com espadas flamejantes e couraças translúcidas, descem, a lançar sulcos
pela terra, e dúvidas, como ogres, no espírito, animam quem sobre os campos o inquieto
olhar deixa pairar, ansioso olhar macerado pelo passar das horas e dos dias,
curta a vida, logo a morte por ela espera.
A mesa, com
todos os seus vasos e os pães da proposição, está agora vazia, aqui e ali,
tecem tecidas teias aranhas brancas, descoloridas, o sol há muito não entra, nem
os candelabros são acesos, nem uma vela de cera se incendeia; da almotolia o
azeite não corre. É uma fábula, a história que te contavam, se de ti cuidavam,
pela noite, antes de adormeceres: era uma vez… Assim, por aqueles incertos dias,
se adormecia, depois vinham sonhos, pesadelos, uma confusão disparatada de tudo
se assenhoreava. Um grito na noite, urro a libertar-se do centro dos pulmões,
dor pulmonar a semear grãos de terror na vigília dos que vigiavam, a cabeça
estonteada de sono movia-se em direcção ao peito, depois erguia-se, se
esfregavam os olhos, e ficava especado a ouvir as horas a passar, enquanto tu
dormias, na delicadíssima textura que o corpo sobre lençóis sentia.
Uma máscara de
fulgor cobria o rosto, quando colhias cerejas e com elas inventavas brincos, composições
astronómicas, famílias de pés doridos e mães famintas. Se Deus te livrar dos
teus pecados, poderás tomar o caminho que da serra, pedregosos são os montes,
vai para a cidade. Aí encontrarás avenidas abertas, uma luz de cinza e betão,
restos de relva, jardineiros a cortaram, bancos de madeira pregados ao chão.
Quando chegares, senta-te a ver as gaivotas a voltear no ar, a entregar o corpo
ao vento, enquanto desenham círculos, espirais, curtas elipses, códigos aéreos
para animais alados, ou anjos, ou demónios sem consciência e tão estranho modo,
eles o têm, de levar homens e mulheres a pecar, enquanto comem cerejas e cospem
os caroços para a rua, a saliva cai, infecta o alcatrão com leves escoriações, o
sol, se vier, as sarará, inclinado para a verdade, lugar de trevas e rectidão,
tudo vendido por um punhado de frutos maduros, pássaros na árvore os debicaram.
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