sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Livro do Êxodo - 39. Os comedores de cerejas

André Louis Derain - Natureza morta com cerejas (1938-39)

Uma palavra, uma frase, apenas uma, e tudo na história natural das cerejas se inclina, em momento de fadiga, para a verdade, o Verão a traz. A memória sangra, vinha pelo granizo de Junho devastada, os cachos a romperem-se pela violência da pedra, o tépido bago invadido pelo exército de gelo, uma legião de anjos infernais, dir-se-á, do céu, com espadas flamejantes e couraças translúcidas, descem, a lançar sulcos pela terra, e dúvidas, como ogres, no espírito, animam quem sobre os campos o inquieto olhar deixa pairar, ansioso olhar macerado pelo passar das horas e dos dias, curta a vida, logo a morte por ela espera.

A mesa, com todos os seus vasos e os pães da proposição, está agora vazia, aqui e ali, tecem tecidas teias aranhas brancas, descoloridas, o sol há muito não entra, nem os candelabros são acesos, nem uma vela de cera se incendeia; da almotolia o azeite não corre. É uma fábula, a história que te contavam, se de ti cuidavam, pela noite, antes de adormeceres: era uma vez… Assim, por aqueles incertos dias, se adormecia, depois vinham sonhos, pesadelos, uma confusão disparatada de tudo se assenhoreava. Um grito na noite, urro a libertar-se do centro dos pulmões, dor pulmonar a semear grãos de terror na vigília dos que vigiavam, a cabeça estonteada de sono movia-se em direcção ao peito, depois erguia-se, se esfregavam os olhos, e ficava especado a ouvir as horas a passar, enquanto tu dormias, na delicadíssima textura que o corpo sobre lençóis sentia.

Uma máscara de fulgor cobria o rosto, quando colhias cerejas e com elas inventavas brincos, composições astronómicas, famílias de pés doridos e mães famintas. Se Deus te livrar dos teus pecados, poderás tomar o caminho que da serra, pedregosos são os montes, vai para a cidade. Aí encontrarás avenidas abertas, uma luz de cinza e betão, restos de relva, jardineiros a cortaram, bancos de madeira pregados ao chão. Quando chegares, senta-te a ver as gaivotas a voltear no ar, a entregar o corpo ao vento, enquanto desenham círculos, espirais, curtas elipses, códigos aéreos para animais alados, ou anjos, ou demónios sem consciência e tão estranho modo, eles o têm, de levar homens e mulheres a pecar, enquanto comem cerejas e cospem os caroços para a rua, a saliva cai, infecta o alcatrão com leves escoriações, o sol, se vier, as sarará, inclinado para a verdade, lugar de trevas e rectidão, tudo vendido por um punhado de frutos maduros, pássaros na árvore os debicaram.

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