Wassily Kandinsky - Composición VIII (1923)
A mão branca e fina, de longos dedos, apoia-se na mesa. Dela, ergue-se
um braço esguio que suporta um corpo. De pé, assim amparada, uma mulher, ainda
nos verdes anos, deixa que a cabeça se incline para o livro que segura na outra
mão. Lê. Circunspecta, deixa sair dos lábios um murmúrio suave e cadenciado. Um
vestido branco, preso na cintura por um lenço cor de vinho, desliza pelo corpo,
como uma onda de feno batido pelo vento suave da tarde. Dos ombros aos pés,
toda ela se cobre de inocência, enquanto as palavras fluem dos lábios e ecoam
na sala, que a dimensão desmedida faz parecer vazia. O rosto, tão branco, traz
consigo um destino tempestuoso, marchetado por olhos de azul cobalto. O cabelo,
cor de fogo, cai pelas costas, e reflecte-se, no espelho de cristal, em
labaredas esquivas. Ao lado, outra jovem mulher, cabelos negros e uma face
pálida e meditativa, acompanha a leitura. O longo vestido verde seco deixa
perceber uma cintura fina. Abre-se, depois, em três largos folhos rodados, para
sobrevoar rasante o chão, mal deixando perceber os pés. Cobre-a ainda um xaile
cor de salmão, cortado por uma fantasia floral vermelha, onde esconde mãos e
seios. Escuta as palavras da outra, enquanto olha, sonhadora, para o livro.
Estão próximas, tão próximas que o seio da ouvinte roça por vezes o braço despido
da que lê. Nesses instantes, a voz treme levemente e logo retoma a cadência,
enquanto o seio se afasta. A voz canta nos ouvidos e brilha nos olhos de quem
escuta. São poemas, mas a entoação traz com ela a volúpia de um encantamento,
um terno chamamento que faz os dois corpos aproximarem-se, para logo se
afastarem, num jogo regido pelo ritmo dos versos, pela música das palavras,
pelo som que, como um íman oculto, os chama um para o outro, tão puros na
beleza ainda não macerada pela desilusão. Por vezes, a mão poisada na mesa ergue-se,
vira a página e logo volta ao seu lugar. O silêncio é então quebrado e os
versos evolam-se, enquanto o seio oculto no xaile se aproxima do braço despido
e o toca com pudor. O verso treme nos lábios, em disfarçada hesitação, e logo
se recompõe, mais encantatório no chamamento, filtro poderoso que traça
secretos laços na inocência dos corações.
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