Sean Scully - Cuarteto (2000)
Não há pássaros. O céu vacila entre o azul claro e um cinza ténue.
Nuvens brancas, farrapos irrequietos arrancados a uma planície de algodão,
deslizam devagar, levados por um vento caprichoso e rodopiante. Alguém exclama:
parece um arquipélago. A voz dilui-se e a luz desce entrecortada pelo troar dos
carros. Ouvem-se buzinas, um concerto furioso e transbordante de ódio, mas logo
se calam para, daí a pouco, novos intérpretes se entregarem a outra exibição.
Olha-se para cima e vêem-se dois prédios, enormes no seu desamparo, que parecem
desenhar um ângulo de 90o. Uma ilusão de óptica de quem espreita de
longe e já não percebe que cada um se instala numa linha diferente e que ambas
correm paralelas em busca de um infinito onde, exauridas pela viagem eterna, se
encontrem e entrelacem para que o ângulo agora entrevisto se torne real. O mais
próximo tem uma cor de terra saibrosa. Enormes e fundas varandas rasgam a
frontaria. Há mesas e cadeiras, mas não se vê ninguém, apenas um cão, numa das
varandas, dorme ao pé de um vaso. Noutra, dois gatos, talvez siameses,
desafiam-se, ameaçam-se, correm um atrás do outro e, é-se levado a imaginar,
olham-se faiscantes, terríveis no repto. Depois, repetem o ciclo e percebe-se
que é apenas um ensaio de uma peça para cuja estreia ainda falta muito. O outro
prédio é um jogo de fachadas vítreas azuis e brancas, um edifício de
escritórios, por certo, de onde a privacidade parece ter sido banida pela
transparência das paredes. Movem-se sombras, fantasmas acorrentados nestas
novas cavernas, onde a luz nunca se apaga. Em cada uma daquelas salas
desenrola-se um drama. Projectam-se negócios, desenham-se peças, advogados
discutem com os seus clientes, uma mulher dorme, a cabeça caída sobre o tampo da
secretária. Por vezes, alguém se chega à parede de vidro e olha para a rua.
Depois o corpo transforma-se em sombra e flutua ao fundo da divisão. Por cima
do prédio saibroso, uma grua estende um braço gigantesco. O cão acorda e ladra.
Os gatos suspendem a corrida de orelhas espetadas. Ouve-se uma sirene e uma
ambulância atravessa a rua e desaparece ao longe. No céu vacilante, não há
pássaros.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.