A minha crónica no Jornal Torrejano.
Quando li pela primeira vez O
Processo, estava longe de ser capaz de perceber a íntima conexão entre a
estranha narrativa do escritor checo e a natureza do mundo moderno, natureza
essa configurada na empresa e no estado burocráticos. Aliás, não tinha sequer
ouvido falar da Max Weber e da sua visão do estado moderno como uma organização
burocrática. O estado como burocracia, na perspectiva weberiana, não significa
um estado atolado em papéis, como acontece na visão popular do fenómeno
burocrático, mas um estado organizado racionalmente tendo em vista a eficiência
e a eficácia dos processos. Isto é fundamental para compreender a estranha obra
de Franz Kafka.
Romances como O Processo ou O Castelo devolvem-nos uma visão sombria
do aparelho de estado, seja este olhado do ponto de vista do poder judicial,
como no primeiro caso, seja observado do ponto de vista do poder político, como
no segundo. No lugar de uma organização racional, onde as decisões são
plenamente justificadas e nessa justificação não deixam margem para duvidar da
sua racionalidade, o que descobrimos é o puro arbítrio, a irracionalidade dos
procedimentos e, em consequência, o esmagamento do indivíduo, sem que ele
perceba muito bem porquê. Em O Processo,
Joseph K., um bancário, é acusado judicialmente, vê-se envolvido num longo e
mirabolante processo jurídico e é executado, sem nunca saber de que é acusado.
Em O Castelo, o agrimensor K. é
contratado por um conde. Depara-se, porém, com uma teia burocrática tal que vê
continuamente defraudadas as suas expectativas, seja de exercer a profissão,
seja de entrar no castelo.
Nestes dois romances, Kafka mostra a irracionalidade da própria
organização do estado moderno, a irracionalidade que habita o centro da própria
razão. O resultado da pressão da racionalidade política sobre o indivíduo deve,
porém, ser procurado não no destino do bancário ou do agrimensor, mas na novela
A Metamorfose, onde, certa manhã,
Gregor Samsa, um caixeiro-viajante, acorda transformado numa barata gigante. A
metáfora é poderosa. No mundo da modernidade, na época da racionalidade extrema
e da burocracia político-económica, o destino do ser humano, do animal racional,
é, estranhamente, converter-se num gigantesco insecto. O trabalho de Kafka é
uma interpretação em profundidade da natureza das nossas sociedades. Uma obra a
revisitar constantemente.
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