Zao Wou-Ki, 2-10-84 |
As paredes de madeira escurecida pelos anos são a pele de animais
pré-históricos deixados ao abandono naqueles parques temáticos que, após a
turbulência da novidade, se entregam a um interminável declínio. O telhado sonolento
como uma manhã de Verão deixa ver as marcas do tempo, as telhas em falta nos
beirais, ervas a despontar como pelotões de pioneiros a anunciar a chegada do
exército verde da natureza. A porta para a varanda do primeiro andar está
fechada, talvez para ocultar alguma intimidade que teima em esquivar-se à
publicidade ou a rasura da vida marcada pelo arsenal imperioso das derrotas.
Nos vidros, reflectem-se o arvoredo e a pureza azul do céu, em quadros
multiformes a acompanhar a deambulação meditativa do dia. Vislumbram-se neles
pássaros vendidos ao ócio e quase se é tomado pela ilusão de ali nascer o canto
que por vezes se ouve. Mais ao longe, a neblina torna incerto o horizonte,
povoando-o de sombras e insinuações, desenhando caracteres que só o
inconsciente decifra, fazendo crescer em
quem olha uma angústia hermética, cuja obscuridade se propaga pela paisagem.
Duas filas paralelas de velhos pinheiros lembram uma companhia de soldados
veteranos, a quem o peso da idade retirou a jovialidade com que se entregavam
aos prolongados amplexos com a morte. Perfilados, vemos as suas bocas
desdentadas, os ramos partidos, o cansaço ao elevarem-se aos céus. Entre eles e
a casa, abre-se uma pequena clareira, de terra negra, maculada pela caruma amontoada pelo tempo, sem que o trabalho dos homens se oponha ao desvario da
natureza. Ali, uma mesa redonda recebe a cobertura de uma toalha branca, irrepreensível
na alvura, uma marca de pureza na incontinência silvestre da floresta. Sobre
ela, um velho bule e duas chávenas de chá, numa faiança a lembrar o requinte deixado como memória pelo século XIX. Um vestido longo, acrisolado
pela luz da manhã, veste uma mulher de olhar preso pela música da melancolia. Fala
baixo e evita súbitos pizzicatos. As palavras são ciciadas, mas não há hesitação no fluxo das frases.
Enquanto deixa correr os sons da boca como se saíssem de uma fonte, os dedos da
mão direita rodam os anéis que circundam os da esquerda. À sua frente, com um
ar tingido pelo espanto, um homem, de óculos redondos de aros dourados, escuta.
Veste-se de fato e gravata. Por vezes, ambos pegam nas respectivas chávenas e
levam-nas à boca, numa encenação perfeita, timbrada pelo hábito. Depois, ela
retoma o discurso e ele põe a máscara do espanto, sem dizer uma palavra, talvez
com medo que lhe saiam da boca cogumelos venenosos que matariam o dia,
envolvendo tudo num luto escusado. Caem dos pinheiros agulhas
aceradas que se depositam, ressequidas, no chão. A mulher levanta-se, entra na
casa, então ele pega no jornal que dormita sobre uma cadeira,
desdobra-o e penetra, através da fuligem das palavras, nos segredos do mundo. A
certa altura pára, tira os óculos, limpa-os com esmero a um guardanapo e volta
a colocá-los, retomando a leitura. Lá dentro, impelida pela aragem, uma porta bate. Ouve-se um grito
de sobressalto e depois o silêncio desce com asas de veludo sobre a velha casa
de férias.
A descrição perfeita da voracidade do tempo.
ResponderEliminarMuito bom.
Um abraço
Muito obrigado.
EliminarAbraço