sábado, 10 de agosto de 2019

Descrições fenomenológicas 45. Um espelho de água

Fernando Lerín, Sem título, 1984

O rio forma ali um pequeno lago de águas mansas, por vezes sobressaltadas se algum pato exausto decide descansar sobre elas. Um espelho, ouve-se dizer. Em verde sombrio, o mundo reflecte-se nele em camadas sobrepostas, como se se estivesse perante um velho palimpsesto, de onde o trabalho do decifrador vai resgatando com paciência os textos antigos e rasurados. A camada mais longínqua é a do céu. Ali convivem a pureza imaculada do azul, que, ao reflectir-se nas águas, desliza para aquele fronteira onde azuis e verdes se tocam, deixando o espectador indeciso sobre a cor que os seus olhos vêem, com o alvoroço das nuvens, umas brancas e leves, outras escuras, pesadas como uma ameaça suspensa sobre o destino dos homens. Passam no reflexo das águas em tumulto, sobrepondo-se, para logo se afastarem, abrindo clareiras, e logo as fechando, impotentes, porém, para evitar que o azul, de novo, desça dos céus para se reflectir nas águas. Sob a perturbação celeste, plátanos e salgueiros deixam que os seus ramos se reflictam na água, criando a ilusão de uma floresta aquática, ali mesmo onde a água desliza lentamente, quase imperceptível. Os olhos não conseguem desprender-se desta floresta ilusória, dotada de uma vida acesa pela luz da manhã. Em primeiro plano, esse texto mais recente, a imagem de quem está a olhar o espectáculo ribeirinho. Há quem converse e aponte para algum peixe que surge à tona de água, há quem olhe rapidamente e, temendo o fascínio, se afaste, desaparecendo dali, e há quem fique ali, apenas para olhar, em contemplação, elevando no silêncio uma oração para que o tempo não passe e a beleza de tudo aquilo permaneça para toda a eternidade. A luz, comandada pela dança das nuvens, porém, desfaz a ilusão e a sequência ininterrupta de claros e escuros lembra que é impossível parar as águas do tempo. Pouco a pouco, a margem fica deserta e o mundo reflectido no espelho de água perde-se na ausência de quem o observe.

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