sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Bruno Schulz, As Lojas de Canela


Não é fácil determinar em que género literário se deve incluir As Lojas de Canela (Sklepy cynamonowe) (1934) do escritor polaco, de origem judaica, Bruno Schulz. A obra foi traduzida por Aníbal Fernandes, a partir do polaco e editada em 2012 pela Sistema Solar (há uma edição anterior na Assírio e Alvim). Aparentemente, estamos diante duma colecção de contos, havendo em cada um deles uma integridade que permite a sua leitura independente dos outros. No entanto, todos eles estão concatenados pela voz de um único narrador, também protagonista, das personagens e do espaço e tempo narrativos. Essas histórias, catorze no total, podem, todavia, ser consideradas como constituindo um único romance.

Não será uma perspectiva enviesada ver a obra de Schulz como uma tentativa de reencantamento do mundo, um contraponto à realidade burocrática e desencantada que o modernidade europeia foi fabricando desde o fim da Idade Média. A estratégia narrativa assenta numa descrição do mundo familiar e social a partir dos olhos de uma criança. Toda a obra é a expressão do modo como o narrador vê o seu mundo. Há uma clara rejeição do realismo e do naturalismo, uma recusa da descrição objectiva e da focagem comum da realidade. A narrativa tem um pendor claramente expressionista, o qual também se encontra nos desenhos do autor (Schulz foi professor de desenho, alguns dos quais surgem neste livro). É no exercício da subjectividade da criança que o autor encontra o caminho para reencantar o mundo, devolvendo-lhe o mistério que o triunfo da razão tinha dissolvido e descativando a imaginação da tarefa burocrática de reproduzir uma realidade exterior.

 A folhagem embaraçada das ervas daninhas e dos cardos arde e crepita no fogo do meio-dia. A sesta preguiçosa do jardim tem o zumbido que a agitação das moscas lhe dá. Os colmos dourados gritam ao sol como uma nuvem de gafanhotos ruivos, os grilos são estridentes na chuva torrencial do fogo, e as silíquias cheias de semente explodem com um ruído discreto de cigarra (pp. 46/7). Este excerto manifesta o modo como Schulz opera a remitologização do real. Encontramos constantemente uma antropormofização da realidade não humana, onde os próprios espaços – a casa de habitação e a loja de família, as lojas de canela ou a Rua dos Crocodilos – ganham vida, como se para eles houvesse transmigrado uma alma. Noutras passagens, porém, encontramos o processo inverso, e é o homem que se animaliza. Toda a escrita é um contínuo exercício de contaminação, na qual os géneros lógicos que organizam a linguagem perdem as fronteiras, tornando-se sujeitos de predicados que a visão comum do mundo não lhes atribui.

A personagem central e o modelo do reencantamento é, como não poderia deixar de ser para um rapaz narrador, o pai. Esta aventura do meu pai com os pássaros a última e a mais brilhante contra-ofensiva que o incorrigível improvisador, o estratega da imaginação, lançou às muralhas de um Inverno estéril e vazio. Só hoje entendo o seu heroísmo: solitário, fez guerra ao tédio infinito que entorpecia a cidade. Sem nenhum apoio e compreensão da nossa parte, esse homem extraordinário defendia sem esperança a causa da poesia. Nas rodas deste moinho mágico afundavam-se as horas vazias, para de lá saírem com perfume e cor (p. 69). O pai é assim o modelo de uma imaginação transbordante. De tal maneira que, o comerciante de tecidos, de uma imaginação delirante, vai sofrendo, ao longo da obra, múltiplas metamorfoses, onde não falta a da sua eventual transformação em barata. Estas transformações emergem na tessitura narrativa como formas de emancipação do mundo burocrático do comércio e dos interesses sociais.

Não se pense, no entanto, que se está perante um autor que se aproxima de Kafka. A imaginação deste é austera, as suas parábolas são, apesar de inusitadas, marcadas por um rigor e severidade que evitam os excessos da hipérbole. Schulz, pelo contrário, entrega-se, sem nunca cair no histrionismo, a um culto do excessivo, procurando levar a linguagem cada vez mais longe, conquistando pelo uso sistemático da metáfora novos poderes para expressar o mundo interior e, dessa forma, devolver o fascínio ao exterior. Kafka e Schulz, apesar de partilharem um ambiente cultural comum, de estarem ambos familiarizados com os mesmos textos bíblicos, apresentam duas formas de imaginação bem diferenciada, apesar de ambas serem profundamente criativas. Se Gregor Samsa tem por destino tornar-se uma barata gigantesca, as metamorfoses do pai do narrador, na obra de Schulz, impelidas pela sua imaginação transbordante, têm por finalidade torná-lo mais humano, como se ser humano fosse um longo e contínuo exercício da imaginação criadora, que se libertou da sua função meramente reprodutora, para usar classificações provenientes de Kant.

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