domingo, 11 de outubro de 2020

Perfis 5. O soldado

Philip Jones Griffith, Soldier with bulletproof shield. Northern Ireland, 1973
Protegido no rosto por um escudo à prova de bala, o soldado caminha. A consciência revolve-se. Os olhos prendem-se ao horizonte. Tem medo, mas caminha. Um incómodo no ventre, mas olha em frente, de arma aperreada. Vai pelas ruas vazias e não sabe se o inimigo o olha. Terá medo esse inimigo invisível? Aprendeu a conviver com o medo e fez dele um aliado. Fala com ele, enquanto caminha. O medo protege-o. Evita-lhe temeridades. O silêncio cresce com os seus passos, e o ar pesa tanto que o sente nos ombros, no capacete que se agarra à cabeça. Uma rua interminável, pensa, e, enquanto pensa, os pés dão passos que mascaram a hesitação do caminhante. Será o fim da rua o ponto a que deverá chegar ou, depois desta, haverá ainda outra, que terá de atravessar sob o véu translúcido do silêncio? Recorda-se da namorada, do seu corpo despido, dos seios que o esperam. Um ruído. Esquece a namorada, corre e abriga-se atrás de um carro. O silêncio volta, ergue-se lentamente e retoma a viagem. Pensa nas janelas, nos telhados, na voz da mãe. Lembra-se de quando jogava à bola num pátio, dos gritos, dos golos falhados. Sou um alvo fácil, diz para si mesmo, enquanto se aproxima do fim da rua e olha o horizonte através do escudo transparente riscado pelo uso. Teme que o esperem ali mesmo e lembra-se da morte de alguns camaradas. Há que chegar ao fim, incita-se. A rua conflui numa grande praça. Está vazia, ou quase. Apenas um rapaz corre por ela. Ele ajoelha-se e aponta a metralhadora. Pode ser um inimigo. Olha-o, enquanto ele corre para ele. Conhece-o muito bem. O rapaz que corre é ele mesmo. Foge do passado, dos dias em jogava à bola nos pátios, para se encontrar consigo sob o silêncio e a solidão do soldado que vive na grande casa do medo. 
 

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