quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Ramón del Valle-Inclán, Sonata de Invierno


A Sonata de Invierno (1905) termina o ciclo de quatro pequenos romances dedicados às memórias amorosas do marquês de Bradomín, talvez o mais admirável dos Don Juan, pois, segundo uma tia, era feio, católico e sentimental. A personagem de Bradomín permitiu, principalmente neste último romance, a Valle-Inclán fazer uma exploração romanesca sobre o carlismo, movimento político antiliberal, defensor do Antigo Regime e oposto tanto aos republicanos como aos monárquicos constitucionalistas. O movimento organizou-se em torno de Carlos VII. Xavier Bradomín, nesta Sonata, está na cidade de Estella, em Navarra, onde se encontra a corte do pretendente ao trono de Espanha, aquando de mais um conflito entre constitucionalistas e absolutistas.

As Sonatas, no seu conjunto, são um autêntico exercício de desconstrução. A estratégia levada a efeito por Valle-Inclán reside no dissimulado contraste entre aquilo que a personagem do Marquês proclama e o modo como é reconhecido pelas outras personagens, por um lado, e, por outro, o que o desenrolar da acção romanesca nos mostra. A estratégia é subtil por que foge ao modelo da demonstração. Aquilo que é afirmado pelo Marquês e pela envolvência é que estamos perante um Don Juan, um católico e um tradicionalista fiel a Carlos VII. O que acontece é que os seus actos e, muitas vezes, as próprias opiniões em vez de confirmarem a tese, acabam por contradizer tanto a sua natureza donjuanesca, como o seu catolicismo e o seu carlismo. O autor constrói a personagem do marquês a partir da tensão entre um ideal, dado pelas três características referidas, e uma existência que, apesar daquilo que o discurso sublinha e engradece, não tem a potência para realizar esse ideal. O glorioso marquês é, a todos os títulos, um falhado.

As aventuras amorosas, quase todas, são inconsequentes ou, mesmo se chegam à consumação sexual, há nelas mais um rasto de derrota do que a afirmação de um D. Juan coleccionador de vítimas, que abandona e esquece. Na Sonata de Inverno, apesar de uma noite fogosa com uma antiga amante aquando da sua chegada à corte de Carlos VII, os seus dois objectivos eróticos – evitar que essa amante opte pelo marido em detrimento dele ou o consumar da sedução de uma jovem educanda num convento – saldam-se da mesma maneira, com um beijo apenas, na verdade um beijo de despedida. Esta natureza equívoca do grande conquistador desenha-se em todas as outras Sonatas, de forma mais acentuada nas de Primavera e de Outono. O donjuanismo é, na verdade, um elemento ideológico e não uma forma de agir ou um modo de existência. Esta visão de Valle-Inclán da figura de D. Juan é uma das mais interessantes, pois desmonta o mito – reduzindo-o a mera ideologia, no sentido marxiano de imagem invertida da realidade – através de um processo que, um leitor ingénuo, acreditará que o reforça.

Em qualquer das Sonatas o apregoado catolicismo de Bradomín choca com a sua aura erótica, mesmo que frustrada. Apesar de ser uma espécie de D. Juan anti-D. Juan, o marquês não deixa de se envolver numa ambiência sensual, na qual mergulha a generalidade dos contactos com o feminino. Os casos consumados ou não com mulheres casadas conflituam com um dos mandamentos que regem a moralidade católica, o de não cobiçar a mulher do próximo. No entanto, o autor é um modernista e como tal não deixa de ser tentado a desafiar as convenções e as próprias convenções religiosas. Tanto na Sonata de Primavera como na Sonata de Inverno o marquês seduz, embora sem consumação sexual, duas candidatas aos votos religiosos. No caso da irmã Maximina, na Sonata de Inverno, há que juntar um outro ingrediente. Há a suspeita de que ela seria filha bastarda do próprio marquês, feia como ele. Desrespeito pela sacralidade do matrimónio, tentativa de destruição através da sedução de vocações religiosas e indiferença perante a possibilidade de incesto, casos que não geram nele nenhum traço de arrependimento, dão a medida da natureza meramente ideológica do catolicismo de Xavier Bradomín.

Resta o seu tradicionalismo, a sua fidelidade a uma aristocracia medieval e à glória antiga de Espanha. Já na Sonata de Verão, passada no México, a revivescência da glória imperial de Espanha, à qual o carlismo se declarava fiel contra a visão dos liberais, é atravessada por uma funda ironia. Na Sonata de Inverno, toda ela perpassada por acontecimentos da história política de Espanha da época em que decorre a acção romanesca, vemos o marquês próximo da Corte, a sua intimidade com Carlos VII, o risco que corre pela causa e até a perda de um braço num recontro com as forças militares inimigas. É aqui que, ao contrário do que tinha acontecido até aí, o discurso vai desmentir a acção. O que será o carlismo e a causa absolutista para o marquês, ele que combate e dá um braço pela causa de Carlos VII? Oiçamo-lo. “Eu achei sempre mais bela a majestade caída que sentada num trono, e fui defensor da tradição por estética. O carlismo tem para mim o encanto solene das grandes catedrais, e já nos tempos da guerra ter-me-ia contentado que o declarassem monumento nacional. Bem posso dizer, sem jactância, que como eu pensava o Senhor.”

Quase no fim da obra, Valle-Inclán deixa a chave decisiva para compreender a personagem Xavier Bradomín, esse falhado D. Juan, falhado católico e falhado carlista. “Eu não aspiro a ensinar, mas a divertir. Toda a minha doutrina está numa só frase: Viva a bagatela! Para mim, ter aprendido a sorrir, é a maior conquista da Humanidade.” A equivocidade do marquês não o aproxima da personagem de D. Juan, mas de D. Quixote. Bradomín é um Quixote dos tempos modernos, um esteta que se diverte com aquilo que finge ser, que ri das suas crenças e da sua falência existencial. 

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