sábado, 5 de novembro de 2022

O principal conflito político

Durante muito tempo, a clivagem direita – esquerda estruturou a vida política. Orientava as opções do Estado e os votos dos eleitores. Essa clivagem que começou, em França, como uma querela entre os defensores do Absolutismo e os dos interesses de uma burguesia ascendente desejosa de os fazer valer politicamente, foi tomando novos sentidos. O mais significativo era o que opunha as classes triunfantes com o liberalismo e as classes trabalhadoras. Jogava-se fundamentalmente no terreno da justiça distributiva, sobre aquilo que nos rendimentos deveria caber ao capital e ao trabalho, havendo todo um espectro de distribuições, que iam de uma quase escravatura até à abolição da propriedade privada dos meios de produção. No meio destes dois marcos havia, e há, gradações distributivas muito diversas.

Hoje em dia, a clivagem direita – esquerda deixou de ser estruturante da vida política. Não é que tenha acabado. Ela persiste. Contudo, uma outra clivagem sobrepôs-se à que era dominante. Está ligada à tensão entre regimes democráticos e regimes autoritários. Não é que esse conflito não existisse há muito. Existia, mas não apresentava os aspectos dramáticos que ostenta nos tempos que correm. A avaliação das situações depende das expectativas. Ora, nas democracias surgiu, a partir da Queda do Muro de Berlim, uma crença de que o mundo caminharia, mais depressa ou mais devagar, para regimes democráticos, tal como são concebidos no Ocidente. A terceira vaga de democratizações, iniciada em Portugal, com o 25 de Abril, iria alastrar-se a todo o planeta, numa espécie de globalização da democracia.

Um conjunto de acontecimentos traumáticos vieram abalar essa confiança num devir democrático do mundo. A evolução política da Rússia, o falhanço democrático das Primaveras Árabes, a rigidez autoritária da China que, em momento algum, deu sinais de se aproximar de uma democracia, a evolução do nacionalismo indiano, tudo isto é uma má notícia. Assim como são más notícias a força do bolsonarismo no Brasil, do trumpismo nos EUA e, também, a evolução da Turquia e de alguns regimes da União Europeia, como o húngaro ou o polaco, ou o peso da extrema-direita em muitos países europeus. Isto para não falar do Irão, Venezuela, Coreia do Norte, Cuba, Afeganistão, a generalidade do mundo árabe. A vaga de democratizações nascida em 1974 encontra-se em refluxo. A intensa luta entre democracias e regimes autoritárias tornou-se o principal foco de conflito que atravessa o mundo e que organiza todos os outros, mesmo os referentes à justiça distributiva.


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