quinta-feira, 25 de abril de 2013

Paul Auster, Homem na Escuridão


Homem na Escuridão, de Paul Auster, revisita uma vez mais a relação entre ficção e história. Não que haja uma tematização da questão do tempo e do discurso que articula a temporalidade no romance de Auster. O que existe é a fusão, ou a tensão, entre ficção e história contrafactual. O romance é composto por duas narrativas. Aquela que diz respeito a August Brill, um velho crítico literário, recolhido em casa da filha, após um desastre, e rodeado pela infelicidade geral, começando pela dele e acabando na da filha, e passando pela da neta, uma estudante de cinema abalada pela execução do namorado que se oferecera como voluntário para trabalhar numa empresa civil a operar no Iraque. Execução por um grupo terrorista que filmou a decapitação do rapaz e a divulgou em vídeo.

A história contrafactual centra-se no pós-eleições em que George W. Bush foi declarado vencedor apesar de ter tido menos votos populares do que Al Gore. Isto terá gerado uma nova guerra da secessão, onde os estados conflituam entre si, gerando-se duas entidades políticas em confronto. Esta história contrafactual substitui a história real e traumática que inclui o derrube das Twin Towers e a invasão do Iraque pelos EUA (à qual está ligada na economia da narrativa a morte do namorado da neta de Brill). Por outro lado, esta guerra virtual que compõe a segunda narrativa é o produto da própria mente de August Brill, nas horas negras da insónia.

Há duas linhas de leitura, não obrigatoriamente exclusivas, que podem ser tomadas em consideração. Por um lado, compreender a história contrafactual da nova guerra da secessão, com os seus episódios delirantes, como uma compensação, no sentido de um mecanismo de defesa contra a realidade. Contra a realidade efectiva de August Brill e do seu círculo familiar, mas também contra a realidade política americana, onde os protagonistas não deixam de estar inscritos, com a eleição de George W. Bush, os ataques de 11 de Setembro e a ominosa intervenção no Iraque. A segunda linha de leitura liga-se a uma processo de revelação. O que se está a passar nos EUA, com o seu conjunto de valores contraditórios, com a guerra no Iraque, com a eleição de alguém como George W. Bush, é uma verdadeira guerra civil. A segunda narrativa de Brill não seria uma profecia mas um apocalipse, uma narrativa da revelação.

Na primeira linha de leitura, a narrativa da nova guerra de secessão faz parte de um processo terapêutico, inscrevendo-se numa estratégia psicanalítica de ilusão e defesa que antecederá o reconhecimento da realidade do próprio protagonista, da aceitação daquilo que a sua vida tem de traumático, nomeadamente a morte da mulher, a sua ausência ou o tempo em que se afastou dela. A segunda linha, contudo, só indirectamente terá uma função terapêutica. Esta segunda linha inscreve-se numa perspectiva trágica, onde August Brill, o homem preso à insónia e à escuridão, vê aquilo que os outros não vêem. A escuridão da noite funciona como uma metáfora da cegueira, o que coloca Brill na posição de Tirésias, o cego que vê a realidade tal como ela é.

Talvez seja necessário, nos dias que correm, para compreender a realidade, para ver o seu funcionamento, que aquele que vê – o narrador – sofra de uma patologia ou, melhor, que seja já uma personalidade patológica. O sofrimento existencial e a insónia nocturna, enquanto metáfora da cegueira do Tirésias contemporâneo, são as condições de possibilidade de perceber uma realidade, a qual é manipulada de tal forma que aqueles que estão sãos vêem apenas a aparência que se produz pela manipulação. A insanidade e a patologia são os caminhos possíveis para a verdade, uma verdade que se revela na tragédia de um rapaz que é decapitado no Iraque ou de um outro que caiu no mundo da nova guerra de secessão sem saber como. Ora esta insanidade exigirá mais a catarse proporcionada com o desenrolar d a tragédia do que o divã da psicanálise.

Contrariamente ao que defendem algumas leituras desta obra de Auster, não estamos perante um ficção distópica, como acontece em No país das últimas coisas, mas perante uma narrativa de desvelamento do mundo tal como ele existe na variante americana, uma guerra civil larvar, a qual acumula, como se fosse uma ilusão de uma mente delirante, milhões de mortos. Um mundo que, porém, não se suspende, como é referido na citação de um verso, o único merecedor desse nome, de Rose Hawthorne, enquanto o bizarro mundo continua a girar. A fusão da ficção com a história contrafactual não pode ser lida apenas como um exercício de meta-ficção na sequência de Pirandello, Philip Dick e outros, mas como uma aventura gnoseológica, onde a revelação da verdade resulta da tensão das duas ficções.

Paul Auster (2008). Homem na Escuridão. Alfragide: Asa. Tradução de José Vieira de Lima.

2 comentários:

  1. Nos EUA a existência de complementaridades ou antagonismos, entre ficção e história contrafactual é inquestionável, mas o mesmo se passa com a relação entre ficção e a realidade que acontece desde que o pais existe, dado ele que viveu/vive permanentemente a pulsão dos ambientes de guerras, sejam elas intestinas ou externas e assumam a forma que assumirem e aquela reflecte essa vivência.

    Abraço

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    1. Para nós, europeus, aquilo nunca deixará de ser um território estranho. Por exemplo, a derrota de Obama na questão das armas é para nós completamente incompreensível. Enfim...

      Abraço

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