Marlene Dumas - Equality (1993)
Podemos voltar as costas à igualdade? Nenhum governo é legítimo se não mostrar uma igual solicitude (equal concern) pelo destino de todos aqueles cidadãos sobre quem reivindica dominação (dominion) e de quem exige lealdade. Igual solicitude é a virtude soberana da comunidade política - sem a qual o governo é apenas tirania - e quando a riqueza de uma nação é muito desigualmente distribuída, como o é agora a riqueza até de nações muito prósperas, então a sua igual solicitude é suspeita. (Ronald Dworkin, Sovereign Virtue - the theory and practice of equality)
Esta citação de Dworkin, com a qual abre praticamente a obra referida, traz de novo para o primeiro plano da filosofia política a temática da igualdade. A questão que inicia o texto não é uma mera pergunta retórica. Ela dirige-se a um problema central do funcionamento das nossas sociedades - por maioria de razões, diz respeito também a Portugal - e à questão da legitimidade do poder político. A questão insere-se num debate aceso há muito anos no mundo ocidental. Dever-se-á privilegiar a liberdade ou a igualdade? Quatro notas históricas.
1. Liberdade e Igualdade, juntamente com a Fraternidade, são as consignas da Revolução Francesa. Contra o Ancien Régime, considerando que todos os homens são irmãos, os revolucionários de 1789 reivindicam não apenas a Liberdade mas ainda a Igualdade. 2. O século XIX, por seu lado, vai constatar, depois das Revoluções americana, francesa e industrial, em Inglaterra, que a igualade perante a lei é puramente formal, pois as desigualdades de destino trazidas pela nova liberdade são, no mínimo, tão terríveis quanto as desigualdades no Ancien Régime. 3. Desta constação nasceu o socialismo, o marxismo e a Revolução soviética, com os seus ideias igualitários. 4. O conflito entre as sociedades liberais e as sociedades igualitárias culminou com a vitória do liberalismo, após a Queda do Muro de Berlim, e o actual desprezo pela ideia de Igualdade.
A questão posta por Dworkin diz respeito, então, ao desenvolvimento da nossa história recente e à possibilidade, defendida amplamente pelos governos ocidentais e pelas elites económicas e financeiras, de evacuação do problema da igualdade das preocupações da vida política. A tese de Dworkin liga a igual solicitude com o destino de todos cidadãos com a legitimidade política democrática. Não é legítimo exercer dominação e exigir lealdade a pessoas que não são objecto de igual solicitude por parte da governação. E é esta igual solicitude que, nos países onde a distribuição de riqueza é muito desigual, está posta em causa e se tornou suspeita.
Esta igual solicitude perante o destino de cada cidadão pode, de certa forma, inscrever-se ainda no âmbito do poder pastoral, tal como o compreendeu Michel Foucault, essa preocupação do soberano-pastor que tem de prestar contas por cada ovelha do rebanho. Poder-se-ia argumentar que a igual solicitude do soberano perante os cidadãos seria uma forma de os tratar como menores, como não livres. Dworkin, porém, ao considerar a igual solicitude como a virtude soberana da comunidade política pretende, também, defender a liberdade, pois sem essa virtude o governo, com as suas reivindicações de dominação e de lealdade, não passará de uma tirania. Percebemos assim que a igual solicitude pode ser vista como a condição de possibilidade de uma comunidade livre e de cidadãos livres.
O grande drama é que a "igual solicitude" sempre diferenciou os que dela deveriam beneficiar, considerando alguns muito mais iguais do que outros...
ResponderEliminarDaí, a questão da legitimidade. Na perspectiva em que se coloca Dworkin, podemos dizer que os regimes democráticos estão a perder a sua legitimidade.
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