quarta-feira, 29 de maio de 2013

Poema 67 - O arqueólogo senta-se com o passado ao colo

Giorgio de Chirico - Os arqueólogos (1927)

67. O arqueólogo senta-se com o passado ao colo

O arqueólogo senta-se com o passado ao colo,
embala-o docemente no ondear do tempo
e espera que adormeça ao cair da noite,
deixando na casa perfumes de rosa e almíscar,
o hálito transbordante da terra escavada,
pedras e rugas tecidas por hábeis tecedeiras.

Senhor de tanta sabedoria, olha o fundo da terra
e espera na revelação de um fragmento de sílex
o cântico da luz a explodir entre saibros e argilas.
Grande é o profeta que perscruta o que passou,
as entranhas fluidas tragadas pela memória,
os traços de musgo incendiados sobre o mar.

A doce harmonia da terra e do escavador,
o prazer de descer ao fundo do corpo amado,
traçar de cada estrato um mapa de seda e sémen,
e com mãos vazias de amante puro e incansável
recolher lento os vestígios do longo amor,
traços de sangue na fria seta da vida apagada.

6 comentários:

  1. "Grande é o profeta que perscruta o que passou", gosto muito deste verso, Jorge. O teu vaticinador cego e teu arqueólogo com a casa a rescender a rosa e almíscar não diferem, afinal, um do outro. Escavam o tempo.

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    Respostas
    1. Sim, são escavadores do tempo, figuras metafísicas, na verdade.

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  2. Ainda e possível pegar no passado ao colo, já que o futuro, esse, vai ser demasiado pesado.
    Abraço

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  3. Amei o seu poema, e vou inclusive, usá-lo, se você não se importar, como parte de um trabalho sobre arqueologia ;-)

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  4. Não me importo desde que sejam feitas as devidas referências, claro. Também gostaria de saber quem é o utilizador.

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