Um velho lugar-comum diz que saber é poder. O conjunto de
facécias, a propósito da pandemia do COVID-9, vindas de Donald Trump e de Jair
Bolsonaro, torna evidente uma outra coisa, poder é saber. O saber científico
torna-se irrelevante, quando não motivo de chacota, e a enunciação feita a
partir do poder, por mais perigosa e contraditória que seja, torna-se saber. O
presidente é que sabe, sublinha a claque. A claque, note-se, é composta por
largas fatias do eleitorado. Esta experiência em dois grandes países
pertencentes ao mundo ocidental atinge tanto o poder como o saber.
Quanto ao poder, as democracias funcionam muito bem se as
suas normas informais são respeitadas pelas partes, se a sua natureza
representativa e liberal é escrupulosamente observada. Fragilizam-se com
facilidade, até se tornarem caricaturas perigosas, quando essas regras
informais são implodidas por demagogos. As democracias enfrentam, neste
momento, um desafio dos mais decisivos. Elas podem morrer nas mãos de tiranos e
de elites obscenas, sob o aplauso de claques ululantes. Os regimes democráticos
precisam de uma vacina que os imunize contra o poder contagiante do vírus da
demagogia.
Também a ciência passa por um momento terrível. Refiro-me à
intervenção do poder político, como nos casos já referidos, para desconsiderar
as conclusões científicas e impor medidas ao arrepio do recomendado pelo
conhecimento. Isto não é novidade, mas pensava-se que em democracia a autonomia
da ciência seria respeitada, que o poder político evitaria entrar em choque com
o saber científico. Havia precedentes. O decretar político do criacionismo como
teoria científica ou a negação do impacto da acção humana na degradação
ambiental do planeta. Agora, com a pandemia, podemos estar numa nova fase da
escalada do poder para controlar a ciência e negá-la como lugar da verdade.
Durante muito tempo, o mundo ocidental ufanou-se de ser o
lugar da civilização. Aliava a democracia política, a prosperidade, a relativa
igualdade entre cidadãos e um saber científico livre e respeitado. O século XXI
não lhe tem sido propício. Uma crescente desigualdade, ataques, cada vez mais
fortes, à democracia dentro dos países democráticos e agora a própria ameaça à
ciência e à sua autonomia. Imaginou-se que regressar a um tempo em que
fanáticos controlavam aquilo que se podia saber era um delírio de mentes
pessimistas, começamos a ter evidências de que não é assim e que a vida
civilizada pode acabar. É muito perigoso quando o poder acha que é nele que está o lugar do saber e da
verdade.
[A minha crónica de Maio em A Barca]
Bem observado.
ResponderEliminarPor vezes interrogo-me sobre se alguma vez o poder não achou que era nele que estava o lugar do saber.
Um abraço
Em democracia temos a esperança (mas é mesmo só a esperança) de que o poder não se arvore no lugar do saber. Seria aquilo a que se chamaria humildade democrática, uma virtude pouco ou nada exercitada.
EliminarAbraço