sexta-feira, 8 de maio de 2020

Frivolidades e extrema-direita

Franz Josef Kline, Red Clown, 1947

No episódio Ventura – Quaresma há qualquer coisa que deve preocupar todos aqueles que querem viver numa comunidade decente, onde se respeitem os princípios do Estado de direito, os da vida civilizada e os direitos humanos.  Esta preocupação é polifacetada, pois o que começa a desenrolar-se aos nossos olhos incide em diversos aspectos, não se resumindo apenas à performance política do deputado do Chega.

Em primeiro lugar, o conjunto de temas que Ventura traz para a esfera pública era até há pouco tempo inimaginável que saíssem da conversa de café ou de arenga numa viagem de táxi. Tanto a direita como a esquerda têm tido linhas vermelhas que muito raramente ultrapassam, as quais contribuem para uma vida política pacífica e, felizmente, pouco polarizada. A aparente inconsistência de Ventura, o facto de haver no seu percurso grandes incoerências, conduz a uma certa sobranceria das forças democráticas, que parece não terem aprendido nada com o Brexit, a eleição de Trump e a de Bolsonaro.

Em segundo lugar, Ventura explora a avidez da comunicação social, das televisões antes do mais, por aquilo que provoca audiências. Até uma conhecida estação de rádio julgou ser moralmente lícito colocar em votação o apoio à proposta de Ventura sobre o confinamento de ciganos. Poucos são os órgãos de comunicação social que estão verdadeiramente empenhados na defesa do regime democrático. Aproveitam as liberdades para, por qualquer meio, mesmo os mais abjectos moralmente, vender um produto. Propostas políticas sérias são coisas chatas, de que ninguém quer saber. Atoardas perigosas geram audiências, consolidam as empresas, geram dividendos. Tudo na comunicação social está estruturado para favorecer o tipo de intervenção fácil e escandalosa de André Ventura. Este não se faz rogado em produzir escândalos.

Em terceiro lugar, a existência de uma plateia acolhedora das diatribes do deputado da extrema-direita. Esta plateia é constituída por pessoas que, por norma, têm fraca consciência política, compromisso afectivo reduzido com a democracia, ressentimento perante as elites políticas, fácil acolhimento dos temas que são explorados pelo deputado Ventura. Esta plateia reforça-se como grupo tanto pela influência disruptiva da  comunicação social como pelas redes sociais, onde se organiza enquanto comunidade e reforça laços ideológicos. Aí o apolitismo transforma-se em campo fértil de opções políticas antidemocráticas e irracionais.  

Em quarto-lugar, o que mais me preocupa, a frivolidade com que os partidos e políticos democráticos estão, da direita à esquerda, a tratar o assunto. Alguns exemplos. O CDS parece deixar-se atrair pelo Chega. Há tempos não afastados, Rui Rio não descortinava no discurso de Ventura nada que lembrasse a extrema-direita. As pessoas da esquerda ficam excitadíssimas com proclamações, petições, slogans, palavras de ordem e coisas do género. O cúmulo da frivolidade é a trivela de António Costa. As pessoas batem palmas, mas há um problema que subsiste e esse não é André Ventura.

Trata-se da existência da plateia referida anteriormente, que não se sente representada politicamente, que não está racional nem afectivamente comprometida com a democracia, que vê as coisas como Ventura diz que são, apesar deste saber que não são assim, e cuja dimensão não se conhece muito bem, mas que se intui não ser pequena e poder crescer, como cresceu a de Bolsonaro ou a de Trump. Este não é um assunto para slogans, palavras de ordem, ditos jocosos e outras frioleiras do género. Trata-se da integração de um conjunto significativo de portugueses na ordem democrática, de os partidos políticos democráticos, à direita e à esquerda, encontrarem caminhos para os fazer sentir representados. Caso a frivolidade da abordagem subsista, ainda vamos ter uma triste surpresa.

2 comentários:

  1. Para tentar sobreviver, essa estação de rádio dá importância à excrescência. Copia a restante CS na disputa da populaça e contribui para a preparação do caldo que nos pode dar a tal triste surpresa.
    Por vezes penso que mais do que uma abordagem leviana estamos perante uma acção de extrema gravidade habilmente premeditada.
    Um abraço

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    1. O que me parece é que aqueles que deveriam levar isto muito a sério, e ainda mais se há premeditação, estão a portar-se de forma leviana. Brincam, entram no jogo ou entrega-se a práticas de esconjuro, mas o demónio - ou a legião de demónios - é sagaz.

      Abraço

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