Henri Rousseau, Scout Attacked by a Tiger, 1904 |
A vida citadina em massa é ainda uma experiência demasiado
recente para fazer esquecer toda a mitologia que incensa o mundo rural. Na
verdade, e tendo em conta a experiência dos últimos dois meses, estar confinado
num apartamento, por grande que seja, ou estar em reclusão no campo não são a
mesma coisa. Neste caso, a reclusão é apenas uma expressão que indica o não
aventurar-se para lá do campo. No entanto, o ar livre, o contacto com a terra e
a água, o apanhar sol, essa outra forma de lidar com o fogo, são possibilidade
que a ruralidade oferece e que são negadas a quem está nas cidades e não quer correr
riscos. Selva urbana é uma expressão que reforça o culto do mundo rural como um
lugar arcaico e próximo da natureza, que permite aos homens aceder mais
facilmente à sua natureza supostamente pacífica e virtuosa. No entanto, a
ruralidade é uma experiência recente na história da espécie humana. Tem cerca
de doze mil anos e, ao contrário do que certo senso comum afirma, ela não
representa uma aproximação à natureza mas um afastamento dela, com a criação de
um espaço domesticado, do qual os perigos para os seres humanos são controlados,
desaparecendo muitos dos que assombravam a vida dos homens. A experiência
realmente arcaica é a dos caçadores-recolectores, que eram predadores mas
também presas. E é esta experiência em que o predador é também facilmente presa
que a vida urbana, em tempo de pandemia, reproduz. O grande confinamento a que
assistimos no mundo urbano é um retorno ao refúgio na caverna, não para se
proteger dos grandes felinos ou de outros predadores eficazes, mas de um vírus
invisível de dimensões não quantificáveis pela nossa experiência quotidiana. E
como se sabe desde Platão, a caverna é o lugar de todas as ilusões. Começa agora o tempo de coleccionar essas ilusões, registá-las e compartimentá-las segundo uma arte taxionómica estrita.
Muito bom.
ResponderEliminarAbraço
Muito obrigado.
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