sábado, 16 de maio de 2020

O retorno à caverna

Henri Rousseau, Scout Attacked by a Tiger, 1904

A vida citadina em massa é ainda uma experiência demasiado recente para fazer esquecer toda a mitologia que incensa o mundo rural. Na verdade, e tendo em conta a experiência dos últimos dois meses, estar confinado num apartamento, por grande que seja, ou estar em reclusão no campo não são a mesma coisa. Neste caso, a reclusão é apenas uma expressão que indica o não aventurar-se para lá do campo. No entanto, o ar livre, o contacto com a terra e a água, o apanhar sol, essa outra forma de lidar com o fogo, são possibilidade que a ruralidade oferece e que são negadas a quem está nas cidades e não quer correr riscos. Selva urbana é uma expressão que reforça o culto do mundo rural como um lugar arcaico e próximo da natureza, que permite aos homens aceder mais facilmente à sua natureza supostamente pacífica e virtuosa. No entanto, a ruralidade é uma experiência recente na história da espécie humana. Tem cerca de doze mil anos e, ao contrário do que certo senso comum afirma, ela não representa uma aproximação à natureza mas um afastamento dela, com a criação de um espaço domesticado, do qual os perigos para os seres humanos são controlados, desaparecendo muitos dos que assombravam a vida dos homens. A experiência realmente arcaica é a dos caçadores-recolectores, que eram predadores mas também presas. E é esta experiência em que o predador é também facilmente presa que a vida urbana, em tempo de pandemia, reproduz. O grande confinamento a que assistimos no mundo urbano é um retorno ao refúgio na caverna, não para se proteger dos grandes felinos ou de outros predadores eficazes, mas de um vírus invisível de dimensões não quantificáveis pela nossa experiência quotidiana. E como se sabe desde Platão, a caverna é o lugar de todas as ilusões. Começa agora o tempo de coleccionar essas ilusões, registá-las e compartimentá-las segundo uma arte taxionómica estrita. 

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