Charles Clifford - The Armor of Philip III (1866)
Para detalhar um pouco mais, é
verdade que o ensinamento de Platão a propósito da tirania é indispensável à
compreensão do “totalitarismo” de hoje, mas desconhecer-se-ia este fenómeno
contemporâneo se se o identificasse pura e simplesmente à tirania do passado.
Basta notar que o “totalitarismo” de hoje é essencialmente fundado sobre as
“ideologias”, e em última análise sobre uma ciência vulgarizada ou desviada,
enquanto que o fenómeno antigo não repousava sobre tal fundamento (Léo
Strauss, Sur une nouvelle
interprétation de la philosophie politique de Platon).
Strauss escreve este texto em 1946, um tempo onde o fenómeno totalitário está especialmente vivo. Nas décadas seguintes desenvolveu-se todo um pensamento de oposição entre democracia e totalitarismo. O apogeu prático-político dessa reflexão teórica é a derrota do campo comunista, simbolizada na queda do Muro de Berlim. Mas, a partir daí, a democracia política parece definhar por falta de substância. Com isto quero dizer: deixou de haver alternativas verdadeiras, e com possibilidade de ascender ao poder, em confronto. Mais, os fenómenos que estavam ligados ao totalitarismo aparecem também ligados às chamadas práticas democráticas. Apesar da proclamação da morte das ideologias, da morte das grandes narrativas, a verdade é que as governações não dispensam as narrativas ideológicas, apresentem-se estas na forma mínima ou na forma de grande narrativa. Por outro lado, o papel da ciência vulgarizada e desviada tem, como aconteceu nos regimes totalitários, um papel estruturante da acção política. Não são apenas as ciências empírico-analíticas, as ciências da natureza, que são mobilizadas enquanto tecnociência para prover a dominação sobre a natureza, mas também as chamadas ciências histórico-hermenêuticas, as ciências sociais e humanas, que são cada vez mais utilizadas para um exercício refinado de dominação sobre a comunidade e os cidadãos. Desde a ciência política à sociologia, passando pela psicologia, a antropologia, a economia, o poder tem tido a capacidade de produzir narrativas ideológicas, por vezes narrativas mínimas, outras grandes narrativas, a partir dos conhecimentos que estas ciências vão produzindo.
Se podemos pensar que nos encontramos numa fase de perversão do ideal
democrático, que a democracia apresenta cada vez mais sintomas inerentes aos
regimes totalitários, podemos dizer que será importante conhecer o que os
clássicos, Platão e Aristóteles, pensaram dos regimes políticos, nomeadamente
da democracia e da tirania. Mas isso não bastará. Será necessário confrontar o
ideal regulador moderno da democracia representativa com o actual exercício do
poder nas democracias ocidentais. Será preciso observar o papel que nelas
continua a ter a ciência vulgarizada e transformada em ideologia. Uma atenção
muito importante merece o papel desempenhado pela ideologização das ciências
sociais e humanas. O que implicará também, para além da reflexão política
propriamente dita, uma investigação dos fundamentos destas ciências, para
compreender como elas permitem com tanta facilidade a transformação do seu
discurso no discurso de uma seita em luta pela manutenção ou conquista do
poder. (averomundo, 2009/06/29)
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