Oscar Dominguez - Libertad (1957)
Enquanto quiserdes viver plenamente autónomos, como senhores
absolutos, sem mesmo um deus para vos dar ordens, vivereis fatalmente como
escravos ou como membro isolado de uma organização qualquer. Paradoxalmente, é
ao aceitar Deus que vos tornareis livres e libertos da tirania humana, pois
quando O servirdes, o vosso espírito não mais se transvia na servidão. Deus não
convidou os filhos de Israel a abandonar a servidão no Egipto; Ele ordenou-lhes
que o fizessem. (Thomas Merton, Semences
de Contemplation)
Este texto de Merton tem o poder de mostrar duas coisas essenciais da
nossa cultura ocidental. Em primeiro lugar, a filiação da liberdade na tradição
religiosa judaico-cristã. E a liberdade não deve ser aqui entendida na visão dualista
da liberdade negativa - liberdade positiva, herdada da reflexão de Isaiah
Berlin e, de certa forma, da tradição liberal (cf artigo da Stanford
Encyclopedia of Philosophy, onde é feita uma exposição aturada dos dois
conceitos e a sua discussão), mas a liberdade como acto de libertação e de
emancipação. O que surpreendemos no texto é o devir histórico do ser livre, mas
um devir histórico que é, curiosamente e ao mesmo tempo, pré-político e
político. É pré-político no sentido que tem um cunho religioso e a liberdade
vem da relação com o absoluto que emancipa e liberta da servidão perante as
coisas relativas. É político pois a imagem da libertação do povo de Israel do
cativeiro está ligada à separação de uma comunidade política, a do Egipto, e à
formação de outra comunidade política, neste caso de uma Teocracia.
Merton mostra ainda uma outra coisa, um estranho paradoxo: a liberdade
nasce de uma injunção exterior. Não nasce da deliberação e do livre-arbítrio do
indivíduo, mas da ordem que Deus dá ao povo de Israel: deixai de ser escravos!
Esta injunção à liberdade, exterior à consciência, evidencia a complexidade da
temática da liberdade consubstanciada na dialéctica da autonomia e da
obediência. Ordenam-me que seja livre. Só chegarei à liberdade se obedecer à
injunção divina. Este paradoxo fascinou os filósofos e está presente, por
exemplo, na moral kantiana onde, em última instância, a única coisa que está em
jogo é o tornar-me livre, o realizar a liberdade, facto que me é ordenado
através de um imperativo formal e categórico. Ou então na filosofia moral de
Sartre onde a liberdade é ressentida como uma condenação, estou condenado a ser
livre.
Esta dialéctica da obediência e da autonomia que institui a liberdade
só podia ser sentida pela consciência humana como algo divino. O mundo natural,
o curso natural das coisas, está submetido à férrea necessidade (a cadeia
causal dos acontecimentos que são regulados pelas leis naturais) ou o acaso. Em
ambos, na necessidade e no acaso, não há liberdade. Esta é radicalmente
estranha à ordem natural das coisas, mesmo das coisas humanas. É essa
estranheza que o Antigo Testamento, no livro do Êxodo, capta em linguagem
religiosa, como se a desmesura da liberdade só pudesse chegar aos homens por
uma ordem de Deus.
Toda esta dimensão da reflexão sobre a liberdade é, lógica e
ontologicamente, anterior à problemática da liberdade negativa e da liberdade
positiva, sendo a primeira entendida como ausência de coacção, barreiras e
obstáculos, e a segunda, a liberdade positiva, entendida como possibilidade de
agir autonomamente e realizar os seus objectivos fundamentais. Tanto num caso
como no outro, há que considerar um devir da liberdade, um tornar-se livre, mas
um tornar-se livre obedecendo a uma injunção. Fica a questão seguinte: os
perigos, apontados pela tradição liberal à liberdade positiva, não estarão
ligados a este paradoxo originário da liberdade, à perversão da injunção
originária, à transição da ordem de Deus para uma ordem colectiva, onde o
colectivo é visto como totalidade orgânica onde se dissolvem, na obediência
puramente humana, as liberdades individuais? (2009/06/19)
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