John Singer Sargent - Venetian Glass Workers (1880-82)
A mais baixa e a única categoria
necessária de salários é aquela que provê à subsistência do trabalhador durante
o trabalho e a um suplemento adequado para criar a família a fim de que a raça
dos trabalhadores não se extinga. Segundo Smith, o salário normal é o mais
baixo que for compatível com a simples humanidade, isto é, com uma
existência bestial.
A procura de homens regula
necessariamente a produção de homens como de qualquer outra mercadoria. Se a
oferta excede por muito a procura, então parte dos trabalhadores cai na penúria
ou na fome. Assim, a existência do trabalhador encontra-se reduzida às mesmas
condições que a existência de qualquer outra mercadoria. O trabalhador
tornou-se uma mercadoria e terá muita sorte se puder encontrar um comprador. E a
procura, de que depende a vida do trabalhador, é determinada pelo capricho dos
ricos e dos capitalistas. (Karl Marx, Manuscritos
Econímico-Filosóficos)
Este texto retirado dos Manuscritos Económico-Filosóficos, de
Marx, revela o fundamento ético que estruturou todo o pensamento posterior do
autor. Há aqui toda uma influência subterrânea da moral idealista de Kant que
convém tornar clara. O que Marx compreende muito bem é que o ser humano, na
figura do trabalhador, fica reduzido à categoria de mercadoria. Como se sabe,
as mercadorias são coisas que se compram e se vendem, são coisas que se
trocam. Uma mercadoria não tem um valor absoluto em si mesma, ela é apenas um
meio para atingir outros fins. Ora Marx percebe então que a humanidade do
trabalhador, em regime capitalista, significa apenas que ele não passa de uma
mera coisa, um simples meio para que outros atinjam os seus fins.
Mas o que tem isto a ver com a moral kantiana? Em primeiro lugar,
porque Kant considera os seres racionais como pessoas e as pessoas, por serem
dotadas de razão, são fins em si mesmas e não meras coisas. Em segundo lugar,
devido à fórmula do imperativo categórico que manda respeitar a humanidade
tanto na minha pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e
simultaneamente como um fim em si mesma e nunca apenas como um simples meio.
Quem deslegitimou moralmente a situação do trabalhador no mundo
liberal não foi Marx, mas a moral kantiana. A lógica do mundo capitalista
assenta, como Marx bem viu, na transformação do trabalhador em mera coisa, numa
mera mercadoria. Para quem se tenha esquecido disto, basta observar o que se
tem passado nas relações laborais durante estes últimos 20 anos.
Pode dizer-se que, no remédio marxista para o problema, foi pior a
emenda do que o soneto. É verdade, mas isso não permite extrair a conclusão de
que o problema não existe. O comunismo foi uma péssima solução para um problema
real. Discute-se muito as relações laborais, a eficiência da economia, a
liberdade de contratação. O problema moral, porém, continua: será legítimo
tratar seres humanos como meras coisas, isto é, como simples mercadoria? Um dos
problemas que a esquerda política, aquela que não se converteu à ideologia do
homem como mera coisa ou mercadoria, é a necessidade de ultrapassar a sombra sob
a qual ainda vive: um desejo claro ou recalcado da utopia, ou distopia,
comunista. Há um problema moral no estatuto dos homens enquanto trabalhadores.
Isto merece pensamento e merece novas formas de acção e representação
políticas. Uma sociedade que vive dependente desse estatuto, o qual reduz a
humanidade de parte substancial dos homens à situação de mercadoria, é uma
sociedade imoral. (averomundo, 2009/05/23)
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