quinta-feira, 30 de agosto de 2018

O passado e a tradição


Graças a um artigo de António Guerreiro, no Público, descobri dois versos extraordinários do realizador e poeta italiano Pier Paolo Pasolini. Deste, conheço alguns filmes, mas nunca li a sua poesia. Pasolini sempre me pareceu ligado ao que, noutros tempos, se chamava, não sem acrimónia política e social, forças progressistas. Os versos, talvez por eu não conhecer a poesia do autor, vejo-os como surpreendentes: Io sono una forza del passato, /Solo nella tradizione è il mio amore (Eu sou uma força do passado, /Só na tradição reside o meu amor).

Os versos não nos dizem que o passado é uma força, tão pouco indicam que a verdade está na tradição. Sublinham apenas que o sujeito poético é uma força do passado, cujo amor – não o conhecimento ou a acção – reside na tradição. Mais que uma declaração sobre o poder do passado e da tradição, Pasolini revela a fragilidade desse passado – cuja força reside agora num indivíduo, talvez solitário – e a impotência da tradição, convertida em objecto de culto sentimental. Interpretemos estes versos à luz da vida que vivemos. Peguemos em duas instituições com passado e tradição. A Presidência norte-americana e o Papado católico.

Se há instituição que, na época moderna, pode reivindicar um passado de liberdade e democracia é a Presidência dos EUA. Esse facto, no entanto, não impede que um presidente tente, com não pouco apoio popular, fazer tábua rasa desse passado. Alguém pode dizer: eu sou uma força do passado, eu acredito na liberdade e na democracia. A declaração, todavia, não é suficiente para travar a demolição do edifício democrático a que se assiste. Outra pessoa pode proclamar: só na tradição católica do Papado reside o meu sentimento. Este, contudo, é impotente perante o triste espectáculo da pedofilia na Igreja e a guerra sem quartel entre o Papa Francisco e os seus inimigos.

Quando o passado e a tradição se manifestam apenas no sentimento de uma subjectividade, e não na força plena e objectiva das instituições, estão ambos aniquilados, transformados em poeira, sublimados no suspiro poético de um coração saudoso. E é isso que marca, nos dias de hoje, as instituições que herdámos. O seu passado e a tradição que dele vivia, os fundamentos em que assentava a sua vida, estão a transformar-se em pó. As consequências não são difíceis de perceber. A queda das velhas instituições não é apenas a morte do passado e da tradição, mas a derrocada do presente. Somos nós – o nosso modo de vida e as nossas crenças – que desabamos perante o nosso  próprio olhar de espectadores incrédulos.

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

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