Graças a um artigo de António Guerreiro, no Público, descobri dois versos extraordinários
do realizador e poeta italiano Pier Paolo Pasolini. Deste, conheço alguns
filmes, mas nunca li a sua poesia. Pasolini sempre me pareceu ligado ao que,
noutros tempos, se chamava, não sem acrimónia política e social, forças
progressistas. Os versos, talvez por eu não conhecer a poesia do autor, vejo-os
como surpreendentes: Io sono una forza
del passato, /Solo nella tradizione è il mio amore (Eu sou uma força do passado, /Só na tradição reside o meu amor).
Os versos não nos dizem que o passado é uma força, tão pouco
indicam que a verdade está na tradição. Sublinham apenas que o sujeito poético
é uma força do passado, cujo amor – não o conhecimento ou a acção – reside na
tradição. Mais que uma declaração sobre o poder do passado e da tradição,
Pasolini revela a fragilidade desse passado – cuja força reside agora num
indivíduo, talvez solitário – e a impotência da tradição, convertida em objecto
de culto sentimental. Interpretemos estes versos à luz da vida que vivemos.
Peguemos em duas instituições com passado e tradição. A Presidência norte-americana
e o Papado católico.
Se há instituição que, na época moderna, pode reivindicar um
passado de liberdade e democracia é a Presidência dos EUA. Esse facto, no
entanto, não impede que um presidente tente, com não pouco apoio popular, fazer
tábua rasa desse passado. Alguém pode dizer: eu sou uma força do passado, eu
acredito na liberdade e na democracia. A declaração, todavia, não é suficiente
para travar a demolição do edifício democrático a que se assiste. Outra pessoa
pode proclamar: só na tradição católica do Papado reside o meu sentimento. Este,
contudo, é impotente perante o triste espectáculo da pedofilia na Igreja e a
guerra sem quartel entre o Papa Francisco e os seus inimigos.
Quando o passado e a tradição se manifestam apenas no
sentimento de uma subjectividade, e não na força plena e objectiva das
instituições, estão ambos aniquilados, transformados em poeira, sublimados no
suspiro poético de um coração saudoso. E é isso que marca, nos dias de hoje, as
instituições que herdámos. O seu passado e a tradição que dele vivia, os
fundamentos em que assentava a sua vida, estão a transformar-se em pó. As
consequências não são difíceis de perceber. A queda das velhas instituições não
é apenas a morte do passado e da tradição, mas a derrocada do presente. Somos
nós – o nosso modo de vida e as nossas crenças – que desabamos perante o
nosso próprio olhar de espectadores incrédulos.
[A minha crónica no Jornal Torrejano]
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