Li o livro de Houellebecq mal saiu em França, pois a
temática, pelo menos em aparência, o crescimento da influência islâmica na
Europa, interessava-me. No entanto, não escrevi de imediato sobre ele, pois
havia ali qualquer coisa que me levou a suspender a escrita. Estava muito
próximo de certos acontecimentos – o massacre no Charlie Hebdo – e havia, e há
nele, demasiado clara, a afirmação de uma tese com repercussões políticas.
Queria afastamento para falar do livro a partir de uma perspectiva menos
politizada. Talvez não seja de todo possível, pois a trama gira em torno de
umas futuras eleições presidenciais francesas, no ano de 2022, em que uma
coligação republicana, para derrotar Marinne Le Pen, faz eleger um candidato
muçulmano, Mohammed Ben Abbes, de uma hipotética Fraternidade Muçulmana.
Mais que a questão política, porém, a obra de Houellebecq
trata da relação entre tradição e modernidade e, inerente a esta relação, a
questão da identidade, da construção de uma subjectividade e o seu estilhaçar
na ausência dos mecanismos sociais inerentes às sociedades tradicionais. A
narrativa gira em torno de um universitário francês, François, especialista em
Joris-Karl Huysmans, um escritor decadentista do século XIX. Esta conexão entre
François e o decadentismo é central. O pessimismo de Huysmans é retomado por
François e as características de Jean des Esseintes, o herói do romance À Rebours, de Huysmans, marcado pela
atitude decadentista, pelos modos e caprichos de um esteta e, fundamentalmente,
pela repulsa sentida perante a modernidade são elementos caracterizadores do
próprio herói de Houellebecq.
Para se compreender plenamente o que está em jogo é preciso
retornar ao processo iniciado no princípio da modernidade, no qual os homens,
lentamente, se vão libertando das massas – clero, nobreza e povo – que lhes dão
sentido e uma direcção existencial e vão afirmando, ao longo dos séculos posteriores,
a pretensão à individualidade, escorada na subjectividade e numa existência
livre. François é o resultado deste processo. Ao entrar na meia idade, tendo
uma vida fundada no mais exacerbado hedonismo, confronta-se com um vazio
existencial, uma vida sem sentido, um exemplo do niilismo que se apoderou das
elites intelectuais de França e, por extensão, do Ocidente. Perante este
panorama e algumas peripécias da vida privada, chega a tomar em consideração o
suicídio.
Este quadro torna patente uma certa visão da modernidade.
Apesar das conquistas no campo tecnológico, o homem moderno chegou a um
impasse, perante a dissolução da própria modernidade e das suas instituições. O
seu corte com a tradição proveniente da Idade Média, ao dar-lhe a possibilidade
de assumir uma individualidade em ruptura com um destino determinado pelo
nascimento, retirou-lhe a substância, esvaziou-o e fê-lo entrar na mais crua
das errâncias. François entretém-se a seduzir alunas, embora aquela a que se
sentia ligado, sendo judia e perante o novo quadro político, acaba por o
abandonar e refugiar-se em Israel. A modernidade, vista no século XXI,
tornou-se um absurdo. Este absurdo, que culmina no niilismo, corrói a
consciência das elites e também das camadas populares.
A salvação do homem ocidental – no caso, francês – revela-se
então, no romance Houellebecq, num retorno e submissão à tradição. Não à
tradição cristã, que deu forma à cultura europeia, mas ao Islão. A vitória do
candidato islâmico contra as pretensões de Marinne Le Pen tem o condão de pôr
fim à guerra civil larvar entre grupos de radicais islâmicos e grupo
identitários. Ben Abbes tem o talento suficiente para uma governação ao centro,
não rompendo assim com os hábitos franceses, e toma um conjunto de medidas que
vão consolidar o seu poder e o triunfo do Islão em França.
Este triunfo, contrariamente ao medo que assola os europeus,
não é feito pela violência, mas por um vulgar jogo político, uma aliança
legitimada pela ameaça da vitória da extrema-direita. A vida torna-se pacífica,
o desemprego desaparece, pois as mulheres deixam de poder trabalhar, a
aparência das pessoas nas ruas torna-se um pouco mais recatada. Para além de
remeter as mulheres para o lar, apenas duas medidas são tomadas que indiciam
que alguma coisa mudou. A islamização da universidade, acompanhada por um
generoso aumento das remunerações, e a permissão da poligamia. Para se poder
ensinar na universidade é necessário converter-se ao Islão. François,
independentemente das motivações egoístas, encontra aí um sentido para a sua
existência e converte-se como muitos dos intelectuais franceses. Um belo
salário e a regularização dos impulsos hedonistas no âmbito de uma nova
legalidade religiosa através da poligamia.
O Islão surge, deste modo, como a substância que dá
consistência aos indivíduos. Inscreve-os numa tradição, regula-lhes as pulsões
eróticas e estabelece um ordenamento natural entre homem e mulher.
Esta nova ordem penetra pacificamente na sociedade pois, subentende-se, vai ao
encontro do desejo profundo dos homens. Aquilo que Houllebecq torna então
patente na submissão de François, e da sociedade francesa, ao Islão é a
indisposição surda dos homens com a evolução das relações entre géneros. Não há
um protesto contra a remissão das mulheres para fora do mundo do trabalho, nem
contra a assimetria e falta de reciprocidade implicadas na poligamia. E é este
quadro que leva François a abandonar a ideia de suicídio, isto é, o niilismo.
Em resumo, a Europa, presa à sua pusilanimidade, à beira de
suicidar-se, tem na tradição islâmica o instrumento para se reinventar e
reassumir um papel no mundo. O romance apresenta assim um dupla face. Mostra
como é possível um triunfo pacífico do Islão na Europa e, ao mesmo tempo, torna
patente a cobardia e a venalidade das elites ocidentais, fundadas no niilismo
produzido pela modernidade, agora em fase de decomposição. Como corolário,
implícitas na trama romanesca, encontram-se duas teses. Uma de ordem política,
a alternativa à islamização da França é a extrema-direita. Outra de ordem
civilizacional, aliás presente num francês, René Guénon, da primeira metade do
século XX convertido ao o Islão. A religião corânica é a saída para a
decomposição do mundo moderno.
O romance, do ponto de vista literário, não é dos mais
interessantes do autor. No entanto, está longe de ser um mero panfleto
provocatório como pretendem alguns detractores. Também, apesar de situar a
acção no futuro, não estamos perante uma obra a que se possa chamar uma
distopia e inscrevê-la ao lado de romances como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, ou 1984, de George Orwell. Trata-se, na
verdade, de um romance filosófico, uma meditação sobre o destino do Ocidente
nos tempos em que vivemos.
Continuo a gostar das apreciações neste blogue aos livros lidos por si, inclusive mesmo quando já li e escrevi sobre a obra, confesso que o Jorge acrescenta sempre algo que não vi e aponta para aspetos que se me tornam importantes. Este post não foi exceção. Na altura falei assim e entretanto li os livros de Huysmann que também me marcaram.
ResponderEliminarhttps://geocrusoe.blogspot.com/2017/03/submissao-de-michel-houellebecq.html
Muito obrigado pelas suas palavras. Sobre o Huysmans escrevi acerca de um dos livros dele. Li outros, mas não tive tempo ou disposição para escrever. Tenho alguns textos em calha, mas tenho tipo pouca disposição.
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