Se há imagem que relacionamos com o nacionalismo é a da
bandeira nacional a ondular, de preferência multiplicada e transportada pelas
multidões. O início do filme de Ladj Ly, um francês de origem maliana, é um intenso
manifesto nacionalista. Crianças e adultos transportam a bandeira de França,
concentram-se em fervor patriótico, cantam em exaltação a Marselhesa e, posteriormente
como se fossem um tsunami, dirigem-se para o Arco do Triunfo, onde a glória de
França, acabada de se sagrar campeã do mundo de futebol, é motivo de uma grande
jornada patriótica.
Que pessoas, porém, são aquelas que vemos exaltadas?
Descendentes das velhas estirpes francas e galo-romanas? Não, aqueles
nacionalistas franceses são negros e árabes, haverá outros, claro, mas o que a
câmara mostra são aqueles. Os minutos iniciais do filme são uma reivindicação
de pertença à nação por parte de pessoas que são francesas de direito mas cuja
relação de facto com os franceses de origem europeia é, no mínimo,
problemática.
Depois da exaltação nacionalista a trama narrativa mergulha
directamente no centro de um mundo problemático, um dos subúrbios de Paris, Montfermeil.
É nele que habitam muitos dos negros e árabes que comemoraram a vitória de
França no campeonato mundial. Da exaltação patriótica passa-se agora à dura
realidade e à difícil relação da polícia com aquela comunidade. O tema central
é o da violência da polícia, violência que o próprio realizador, quando jovem,
terá filmado em alturas de grande conflito.
A tensão opõe a polícia a bandos de jovens. No entanto, Ladj
Ly, morador daquele bairro, deixa ver a vida social que o anima. Os negócios
escuros que proliferam, a presença forte do Islão – ele é muçulmano – com matizes
diferenciadas, conflitos com outras etnias – aliás o que desencadeia a narrativa é
o roubo de um leão bebé num circo propriedade de ciganos por um dos miúdos
negros daquela comunidade – e todo um mundo miserável, de uma arquitectura horrível
e onde cresce uma juventude desocupado e sem horizontes.
O filme tem uma forte componente de intervenção social e de
tomada de posição. No entanto, nem os polícias nem os jovens, as duas partes do
conflito, são tratados a preto e branco. E nenhuma das partes está numa
situação fácil nem parece saber lidar com essa situação, com a excepção de um
dos elementos da Brigada Anti-Crime, Stéphane Ruiz, vindo naquela altura da
Normandia. Este mais do que o polícia bom encarna o olhar exterior,
descomprometido com o conflito, embora comprometido com valores de respeito
pela humanidade do outro e códigos de imparcialidade.
Ladj Ly não oferece ao espectador um panfleto, mas uma
reflexão sobre a condição humana numa comunidade onde a miséria – uma miséria
que desde o século XIX e o tempo de Victor Hugo sempre ali existiu – é o
ambiente onde aqueles homens, pois estamos perante um filme em que só quase
entram homens, manifestam a sua humanidade mutilada. Mutilação fruto de um reconhecimento
que nunca chega por parte de uma nação que é a deles, que eles vitoriam, mas
que os encerra naquilo que se poderia chamar um campo de concentração de portas
abertas. Estão presos pelo poderoso íman da miséria.
Excelente crítica. Obrigado.
ResponderEliminarUm abraço
Muito obrigado.
EliminarAbraço