Nos acontecimentos ligados à emergência do coronavírus,
podemos dizer que há duas realidades ligadas acidentalmente. A primeira diz
respeito à eventual pandemia, à facilidade do contágio que proporciona um mundo
aberto e no qual toda gente viaja para todo o lado. Ligam-se a ela todas as
preocupações profilácticas, as medidas de tratamento, a procura de vacinas,
etc. No entanto, com a propagação do vírus e o combate à epidemia, uma outra
realidade emergiu. Já diversas vezes sublinhado, um dos efeitos colaterais mais
interessantes da emergência da doença é a drástica diminuição da poluição na
China. O modo habitual de vida foi suspenso e as medidas para evitar o contágio
vieram mostrar alguma coisa de que estávamos esquecidos.
A questão central nem será a da qualidade ambiental, mas a
do próprio modo de vida em que o mundo se precipitou, marcado pela intensa
mobilidade das pessoas e a sua contínua mobilização produtiva e consumidora. O
fenómeno do novo nomadismo, estudado há muito na Sociologia, recebe um
constante incremento pelo aumento da velocidade dos transportes e pela
diminuição contínua do seu custo. Seja por turismo ou por trabalho, demasiada
gente move-se todos os dias entre as diversas partes do mundo. Esta mobilidade
de grandes massas está escorada na mobilização cada vez mais intensa das
pessoas para a produção, onde produzem cada vez mais e a ritmos sempre mais
frenéticos, e no consumo, o qual acompanha em crescimento e ritmo a produção. A
vida dos seres humanos, na época em que vivemos, parece então circunscrita por
uma santíssima trindade. Produção, consumo e viagem, que faz de espírito santo.
O coronavírus abriu uma fresta – na China, em Itália, por
exemplo – que permite olhar para um outro mundo onde a produção e o consumo se
tornaram mais lentos e a viagem foi colocada em suspenso. A fresta aberta
permite que se veja o que há de insensato no modo vida para o qual nos
arrastamos e deixamos arrastar. Poluição que desaparece dos céus, cidades que
se tornam humanas pela ausência da massa de turistas, consumos que diminuem,
produções que se descobrem supérfluas. É evidente que a fresta não vai durar
para sempre e mal ela se feche, voltaremos ao mesmo. Produziremos mais,
consumiremos mais e viajaremos sem descanso, até ao próximo acidente. Há muito
que os homens deixaram de ter mão na máquina infernal que montaram. Talvez a
fresta acidental seja um aviso e um convite à mudança de vida, mas é muito
duvidoso que oiçamos o aviso e aceitemos o convite.
Muito interessante e pertinente.
ResponderEliminarAbraço
Obrigado.
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