sábado, 7 de março de 2020

Um vírus abre uma fresta


Nos acontecimentos ligados à emergência do coronavírus, podemos dizer que há duas realidades ligadas acidentalmente. A primeira diz respeito à eventual pandemia, à facilidade do contágio que proporciona um mundo aberto e no qual toda gente viaja para todo o lado. Ligam-se a ela todas as preocupações profilácticas, as medidas de tratamento, a procura de vacinas, etc. No entanto, com a propagação do vírus e o combate à epidemia, uma outra realidade emergiu. Já diversas vezes sublinhado, um dos efeitos colaterais mais interessantes da emergência da doença é a drástica diminuição da poluição na China. O modo habitual de vida foi suspenso e as medidas para evitar o contágio vieram mostrar alguma coisa de que estávamos esquecidos.

A questão central nem será a da qualidade ambiental, mas a do próprio modo de vida em que o mundo se precipitou, marcado pela intensa mobilidade das pessoas e a sua contínua mobilização produtiva e consumidora. O fenómeno do novo nomadismo, estudado há muito na Sociologia, recebe um constante incremento pelo aumento da velocidade dos transportes e pela diminuição contínua do seu custo. Seja por turismo ou por trabalho, demasiada gente move-se todos os dias entre as diversas partes do mundo. Esta mobilidade de grandes massas está escorada na mobilização cada vez mais intensa das pessoas para a produção, onde produzem cada vez mais e a ritmos sempre mais frenéticos, e no consumo, o qual acompanha em crescimento e ritmo a produção. A vida dos seres humanos, na época em que vivemos, parece então circunscrita por uma santíssima trindade. Produção, consumo e viagem, que faz de espírito santo.

O coronavírus abriu uma fresta – na China, em Itália, por exemplo – que permite olhar para um outro mundo onde a produção e o consumo se tornaram mais lentos e a viagem foi colocada em suspenso. A fresta aberta permite que se veja o que há de insensato no modo vida para o qual nos arrastamos e deixamos arrastar. Poluição que desaparece dos céus, cidades que se tornam humanas pela ausência da massa de turistas, consumos que diminuem, produções que se descobrem supérfluas. É evidente que a fresta não vai durar para sempre e mal ela se feche, voltaremos ao mesmo. Produziremos mais, consumiremos mais e viajaremos sem descanso, até ao próximo acidente. Há muito que os homens deixaram de ter mão na máquina infernal que montaram. Talvez a fresta acidental seja um aviso e um convite à mudança de vida, mas é muito duvidoso que oiçamos o aviso e aceitemos o convite.

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