Edvard Munch - Ansiedade
A superioridade moral do sistema liberal na política e na economia, que deste modo (com a derrocada dos regimes comunistas) se evidenciou, não provoca, no entanto, nenhum entusiasmo. É demasiado grande o número de pessoas que não partilham os frutos desta liberdade, ou mesmo perdem qualquer liberdade: o desemprego torna-se novamente um fenómeno de massas; o sentimento de não ser necessário, da inutilidade, atormenta os homens não menos que a pobreza material. A exploração sem escrúpulos pratica-se cada vez em maior escala, o crime organizado faz uso das oportunidades do mundo livre, e no meio de tudo vagueia o fantasma do sem-sentido. [Joseph Ratzinger, Freiheit und Wahrheit (Liberdade e Verdade), 1995]
Estava-se em 1995, ainda mal tinham terminado os ecos da Queda do Muro de Berlim e da implosão do comunismo. Nessa altura, o liberalismo parecia ter-se tornado uma evidência universal. Em 1992, Francis Fukuyama tinha escrito O Fim da História e o Último Homem, onde considerava a democracia liberal e capitalismo o coroamento da história da humanidade. Em 1995, a conversão dos intelectuais e das classes políticas europeias a esta nova evidência davam ainda passos muito tímidos, embora decisivos. O diagnóstico de Ratzinger é, porém, demolidor. Não é o chefe de um partido comunista que está a falar. Deve ter havido chefes comunistas europeus muito mais brandos com o liberalismo do que o agora ex-Papa. Muito do que está aqui a ser dito por Ratzinger só nos últimos anos se tornou manifesto para muita gente.
A pergunta que se pode colocar é a seguinte: por que razão a liberdade - que se manifesta no sistema liberal - não provoca qualquer entusiasmo? Ratzinger faz uma fenomenologia das razões de ausência de entusiasmo: desemprego em massa, sentimento de inutilidade das pessoas, pobreza material, exploração sem escrúpulos galopante, crime organizado, o fantasma do sem-sentido. O interesse desta descição fenomenológica dos efeitos do liberalismo reside na conexão - uma assustadora conexão - entre a liberdade - entendida segundo o credo liberal - e a ausência de sentido na vida dos homens, conexão que é mediada pelos fenómenos de empobrecimento produzidos pela economia liberal.
O problema levantado por Ratzinger é terrível e toca num dos valores essenciais dos nossos tempos, a liberdade. Por que motivo a liberdade, tal como a entendemos no Ocidente, conduz ao niilismo? O que há de obscuro nela que torna os homens indiferentes aos outros homens e produz sociedades onde o ser humano está a mais? A potência criadora da liberdade é enorme. Contudo, essa potência parece operar, ao mesmo tempo, a segregação, a criação de divisões, o aniquilamento do outro. O que o texto de Ratzinger propõe ao pensamento é que este pense essa obscuridade que a liberdade traz consigo. Este é um dos problema filosóficos centrais do nosso tempo. Na verdade, a liberdade que parece a coisa mais conhecida não passa de um enigma posto por um tempo que, não sem propósito, podemos considerar esfíngico.
Pelo que tenho lido aqui, constato que Ratzinger terá um lado que eu não conhecia.
ResponderEliminarMas, sinceramente, também concluo que ninguém lhe ligou muito, incluindo os católicos e o próprio Vaticano.
Um abraço
Não sei se ninguém lhe ligou. Julgo que, pelo menos em certos meios intelectuais, foi lido e escutado com respeito. É claramente um intelectual alemão. O facto de ser teólogo e não filósofo ou sociólogo acaba por não ter muito relevo. Há uma disciplina intelectual comum a muitos autores alemães, tanto de esquerda como de direita. Dialogou publicamente com o mais importante neomarxista alemão, Jürgen Habermas, sobre a questão pública. Tem uma vantagem sobre muitas autores alemães. É muito claro no que escreve, embora eu não conheça os seus textos de teologia.
EliminarAbraço