A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.
A dolorosa situação actual traz com ela uma alteração radical da
matriz que dava forma à nossa existência colectiva. Seja o programa do governo
e da troika derrotado ou tenha
vencimento, arrastando-nos continuamente para uma miséria cada vez maior e
tornando a vida absolutamente insuportável, uma coisa tornou-se óbvia. Nada vai
a ser como foi até 2008. A matriz social que começou a ser desenhada no
primavera marcelista, que foi continuada pelo 25 de Abril de 1974 e
intensificada pela adesão à União Europeia, essa matriz não está moribunda,
está morta.
As enormes manifestações de 2 de Março foram as grandes exéquias fúnebres
dessa matriz. O aspecto dorido de muitas participantes indicava isso mesmo. Não
estou a dizer que a morte dessa matriz seja uma coisa boa. Ninguém gosta de ver
morrer alguém que ama. Mas quando morre, o nosso desgosto pessoal é irrelevante
para alterar a situação. Que matriz foi essa que morreu? Foi aquela que se
manifestou ao transformar-se o Estado na esperança secreta de todos nós,
trabalhadores, empresários, artistas, banqueiros, etc. Esta confiança no Estado
foi a face visível de um descomprometimento geral da sociedade portuguesa com a
vida e o bem tanto comum como, muitas vezes, privado.
Temos um problema pela frente: como vamos sair, agora que o Estado
traiu a esperança que nele fora depositada, do enorme sarilho onde nos
encontramos? Julgo que ninguém sabe, a começar pelo governo e a acabar na
oposição. Haverá quem julgue que a liberalização pura e dura será a saída.
Outros pensarão que o morto pode ressuscitar. Na verdade, a liberalização pura
e dura levar-nos-á a uma miséria galopante, enquanto a esperança da
ressurreição da velha matriz, mesmo em tempo de Quaresma, é uma pura ilusão.
Talvez houvesse uma possibilidade de encontrar um caminho que
diminuísse a dor que a mudança matricial está a produzir. Esse caminho
implicaria que os portugueses soubessem claramente a situação em que se
encontram, que percebessem que o estado geral é muito idêntico ao da economia de guerra. Implicaria que
estivessem dispostos a um aumento drástico do seu poder de iniciativa e da sua
capacidade de solidariedade. Por fim, necessitaria de uma classe política – ou de
uma direcção política – que, alicerçada no conhecimento da realidade nacional,
conseguisse estabelecer entre todos nós um pacto para enfrentar o estado de guerra em que nos encontramos.
Alguém sério e preparado que governasse para todos e não apenas para alguns.
Talvez seja pedir o céu na terra. O mais provável é termos direito apenas a um
inferno sem fim.
"L'Enfer c'est les autres (?)".
ResponderEliminarÀs vezes dou comigo a discordar de Sartre.
Nós é que nos condenámos ao inferno, ao eleger sucessivamente "diabos" para nos queimarem...
Um abraço (de regresso)
Esses que elegemos não deixam de ser outros e não deixam - antes pelo contrário - de frustrar o nosso desejo. Talvez Sartre continue a ter razão.
EliminarAbraço e bom regresso.