terça-feira, 5 de março de 2013

A escrita e a vida

Maria Helena Vieira Da Silva - Memória (1966-1967)

Quando, porém, chegou a ocasião da escrita, Theuth comentou: «Este é um ramo do conhecimento, ó rei, que tornará os Egípcios mais sábios e de melhor memória. Está pois descoberto o remédio da memória e da sabedoria».

Ao que o rei responde: « (...) Ora tu neste momento, como pai da escrita que é, por lhe quereres bem, apontas-lhe efeitos contrários àqueles que ele manifesta. É que essa descoberta provocará nas almas o esquecimento de quanto se aprende, devido à falta de exercício da memória, porque, confiados na escrita, é do exterior, por meio de sinais estranhos, e não de dentro, graças a esforço próprio, que obterão as recordações. Por conseguinte, não descobriste um remédio para a memória, mas para a recordação. Aos estudiosos oferece a aparência da sabedoria e não a verdade, já que, recebendo, graças a ti, grande quantidade de conhecimentos, sem necessidade de instrução, considerar-se-ão muito sabedores, quando são ignorantes na sua maior parte e, além disso, de trato difícil, por terem aparência de sábios e não o serem verdadeiramente.» (Platão, Fedro 274e - 275b)

Nesta passagem mitológica do Fedro, Sócrates levanta um dos principais problemas de uma cultura que se funda na escrita. A diatribe do rei egípcio contra a escrita não é uma recusa reaccionária de uma nova invenção. Representa antes uma reflexão sobre o formalismo que a escrita veio trazer às culturas humanas. Formalismo que veio sempre a crescer e que, nos dias de hoje, reduziu a sabedoria ao conhecimento meramente proposicional. O que está em jogo é muito simples. Com a escrita, os homens passam a ter as palavras sem a própria coisa. Esta, a própria coisa, não é um referente externo ao qual as palavras se referem, mas a sabedoria pessoal e existencial. Um dos exemplos mais terríveis do formalismo inaugurado pela descoberta da escrita é dado pelas elites nazis. Muitos dos seus membros eram pessoas educadas e cultas, segundo os padrões ocidentais. A sua erudição e cultura, porém, não eram sabedoria. As palavras que leram não as impediram de participar nos crimes mais horríveis cometidos pela humanidade.

Hoje em dia, as universidades formam muitos investigadores e especialistas de todas as áreas. As suas cabeças estão cheias de palavras escritas, de conhecimento proposicional. Mas elas não deixam de ser profundamente ignorantes, pois aquelas palavras não as tocam, estão armazenadas em livros ou num dispositivo digital qualquer, mas são um corpo estranho à vida. Como diz o texto, tornam-se pessoas de trato difícil, pois são aparentemente sábios sem o serem efectivamente. Este formalismo introduzido pela escrita encontrou, nos dias de hoje, o seu momento paroxístico na especialização dos saberes, de todos os saberes, incluindo a velha filosofia. Ninguém possui já uma visão do mundo ou uma concepção da vida. É-se especialista de um problema minúsculo sobre o qual se escrevem milhares de palavras. Este é um dos traços da crise espiritual em que vivemos. Um traço surpreendente pois ele inscreve-se no centro do próprio espírito que anima a nossa cultura, o saber.

Certamente, não faz sentido abolir a escrita para se adquirir de novo a sabedoria que nos vai faltando. Como disse S. Paulo, onde abunda o pecado superabunda a graça. Se a escrita inaugurou um caminho de queda e perdição da sabedoria, é nela que estará ainda a chave de retorno a essa sabedoria. Deixar de lado a sua função pragmática e utilitária e encontrar nela  - nos textos escritos - um local de confronto. O confronto com o mundo que a escrita transporta e o confronto com o mundo que fixamos na escrita. Desse ponto de vista, a escrita é um campo de batalha e exige do leitor e do escritor as competências da arte da guerra. O que está em jogo na guerra - para cada homem que nela está imerso - é a vida e a morte, fontes últimas de toda a verdadeira sabedoria. Para que assim seja, porém, é preciso não esquecer a diatribe do rei egípcio contra a escrita. Ela deve estar inscrita, como um aviso, no fundo da alma de todo aquele que lê ou escreve. Assim, a memória não será mera recordação, mas sabedoria viva., relação com o mundo e confronto com a vida e a morte

4 comentários:

  1. Do ponto de vista filosófico não ouso comentar. Numa perspectiva simplista mas actual, sempre digo que mal andariamos sem a escrita, restáva-nos a televisão, logo, a estupidez e a ignorância. controladas.

    Um abraço

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    1. O curioso é que a televisão é filha da escrita. Não é possível chegar produtos tecnológicos complexos sem conhecimento proposicional, e este só é possível numa civilização da escrita. No fundo, talvez o rei egípcio se estivesse já a referir, anacronicamente, à televisão. Uma espécie de profecia.

      Abraço

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  2. Percebo o que quer dizer, mas não acha que a escrita merecia ter "outra filha"?...
    Peço desculpa pela brejeirice da metáfora, mas, são tantas as vezes que a mãe da televisão é insultada, sem ter culpa alguma.

    Um abraço

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    1. Talvez merecesse, mas a verdade é que não se podem escolher os filhos que tem...

      Abraço

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