Vincent Van Gogh - O 14 de Julho em Paris (1886)
O traço mais visível, mas não necessariamente o mais decisivo, da oposição entre o tempo da ficção e o tempo da história é a libertação do narrador - que não confundimos com o autor - relativamente à obrigação maior que se impõe ao historiador: a de se vergar aos conectores específicos da reinscrição do tempo vivido sobre o tempo cósmico. Dito isto, damos apenas uma caracterização negativa da liberdade do artista da ficção e, por implicação, do estatuto irreal da experiência temporal fictícia. Personagens irreais, dir-se-á, fazem uma experiência irreal do tempo. Irreal no sentido em que as marcas temporais desta experiência não exigem ser ligadas a uma única rede espácio-temporal do tempo cronológico. (Paul Ricoeur, Temps et récit - III Le temps raconté, p. 185)
Não é tanto a tese de Ricoeur que se pretende questionar. O que se pretende sublinhar é outra coisa. A inscrição do tempo histórico vivido no tempo cósmico e cronológico é surpreendentemente ficcional. O tempo cronológico não é ele mesmo uma evidência de uma realidade que exista em si e por si mesma, mas uma pura construção ficcional. Datar os acontecimentos históricos significa inscrevê-los num determinado calendário. O calendário, porém, não passa de uma construção ficcional da espécie humana. Melhor, de uma construção ficcional de determinada cultura que faz parte da espécie humana, pois existem múltiplos calendários fundados em diferentes ficções, as quais utilizam adereços (por norma, elementos extraídos da observação do cosmos) para compor um cenário ficcional onde se inscrevem os eventos.
O consenso cultural que suporta um calendário - ou o consenso da espécie relativamente à necessidade de construção de calendários - recalca a natureza ficcional onde nos habituámos a inscrever os acontecimentos históricos. Este recalcamento deve ser tomado no sentido psicanalítico. O que é o recalcamento em psicanálise? É um processo pelo qual se elimina da consciência partes inteiras da vida afectiva e relacional profunda. É indispensável à simplificação da existência corrente. (ver aqui). Compreendemos, facilmente, que o calendário simplifica a vida quotidiana, ajuda a estruturar a memória, fornece um apoio à imaginação e um horizonte à razão. Mas o recalcamento não é apenas isso. A simplificação é uma eliminação da consciência de qualquer coisa que interfere com os níveis mais profundos da espécie humana, recalca o terrível momento em que o homem descobre o passar do tempo, certamente uma experiência muito arcaica. O calendário é a domesticação dessa experiência, cujo impacto foi recalcado. E o recalcamento não se dá apenas por uma questão de utilidade na gestão dos negócios quotidianos, mas porque deve ter sido uma experiência absolutamente devastadora e dolorosa. O calendário é o resultado de uma dor, é uma ficção analgésica.
É nessa ficção analgésica que a vida histórica deve ser inscrita pelo historiador. Mas se o cenário onde se inscrevem os acontecimento históricos é uma ficção, que estatuto poderão ter esses mesmos acontecimentos? Não serão, também eles, ficções analgésicas? Ao ficcionalizar a natureza ontológica do tempo através do calendário, não apenas diminuímos o doloroso impacto, sobre a consciência dos homens, dessa coisa informe que aprendemos a chamar tempo, como criamos uma estratégia - a História, a descrição e a explicação históricas - para diminuir o impacto doloroso que os eventos têm sobre essa mesma consciência.
O narrador de uma ficção relacionar-se-á com o tempo de forma diferente do historiador? Em aparência sim, pois a narrativa não tem de se inscrever no calendário adoptado numa dada cultura. Cada narrativa ficcional pode ficcionar o seu calendário - de forma explícita ou implícita - e inscrever nesse cenário as acções e os eventos narrados. Se o calendário que o historiador utiliza para ordenar a vida histórica é uma ficção cultural ou, no melhor dos casos, da espécie, haverá uma diferença ontológica entre História e ficção? Ora se não houver, como se pode muito legitimamente suspeitar, acabamos por descobrir que as narrativas ficcionais são também elas formas analgésicas do encontro do homem com o tempo e os acontecimentos, recorrendo à imaginação para antecipar e, desse modo, amortecer o encontro com aquilo que, ao mesmo tempo, nos horroriza e fascina. Fazemos História e contamos histórias não para pensar mas, muito justamente, para evitarmos pensar naquilo que dá que pensar.
Na impossibilidade para o Historiador de observar o Tempo real e o Espaço real da História, resta-lhe tratar à distância o tempo cronológico e trabalhá-lo à "sua" maneira, porque, as mais das vezes, lhe introduz factos "improváveis",
ResponderEliminarJá um Autor pode ficcionar a trama e distribuir os seus (dela) Tempos, de relógio e calendário, de acordo com a sua imaginação e a necessidade de conseguir alcançar a forma e o conteúdo que lhe interessam, relativamente à história que pretende transmitir para o leitor,
O Narrador, na minha perspectiva, usa, sobretudo, o Tempo e o Espaço diagéticos, para passar a narrativa, de modo selectivo e sem colidir (?) com a "intriga" da História e das histórias.
As "cumplicidades" nas intenções acabam, em muitos casos, por se tornar óbvias.
Esta é uma visão simples, que não me impede de expressar o meu acordo com a última frase do seu, todo ele, excelente texto.
Bom fim-de-semana
Um abraço
O meu problema começa logo com o tempo real e o espaço real. O tempo e o espaço que observamos são reais ou apenas formas como interpretamos "qualquer coisa" onde nos encontramos? Esta é, por exemplo, a posição kantiana: o espaço e tempo são formas como a subjectividade da espécie humana organiza a experiência, não são propriedades das coisas nem são coisas. Esta posição sempre me pareceu de difícil refutação. Mas ainda mais difícil, ou mesmo impossível, é pensar o que é essa coisa que está aí sem o auxílio das categorias do espaço e do tempo. As narrativas, históricas ou ficcionais, inscrevem-se já dentro dessa impossibilidade.
EliminarAbraço