sábado, 30 de março de 2013

Meditações dialécticas (3) - O discurso literário e a verdade do mundo

Paul Klee - Open Book (1930)

Nos textos literários não existe qualquer referência, nenhum significado distinto do sentido que se lhes dá. As figuras e metáforas usadas nesses textos não são mais do que aquilo que o autor comunica ou evoca por meio delas, ou o que emerge através de tal evocação. (Robert Spaemann, El rumor inmortal, p. 17)

A tese de Spaemann radica numa crença realista sobre o mundo a que um enunciado científico ou do senso-comum se referiria. De forma diferente desses enunciados, os literários não se refeririam ao mundo mas apenas a um universo interior do autor que assim se expressa e é comunicado. Duas objecções.

Em primeiro lugar, convém salientar que os materiais que a literatura usa - a linguagem e as suas estruturas diversas - são materiais intramundanos e, só por isso, eles não só se referem ao mundo como são partes do mundo. A linguagem é uma das estratégias auto-referenciais do mundo. Sendo assim, as obras literárias, as metáforas e todas as outras figuras têm não apenas um sentido, como um significado que se refere, por estranha que possa parecer a referência, ao mundo.

Em segundo lugar, está pressuposto na tese de Spaemann que haverá referências ao mundo cuja aceitação não implica a suspensão das descrença (para usar a velha expressão de Coleridge). Dito de outra maneira, haverá descrições do mundo - por exemplo, as científicas - que se referem efectivamente a algo real, enquanto as ficcionais (literárias, mas também pictóricas, musicais, etc.) remetem para uma dimensão sem realidade ou de realidade ontologicamente diminuída. O problema é que os enunciados, mesmo os científicos, remetem para outros enunciados que são apresentados como justificativos. Desse ponto de vista, são ficções (Popper chama-lhe conjecturas) que funcionam enquanto não são falsificadas. Ao serem conjecturais estabelecem um ponto de contacto com as ficções artísticas, não se descortinando razões para afirmar uma diferença de qualidade entre enunciados científicos e ficcionais, pois todos são ficcionais.

Se se considerar as duas objecções, estamos perante dois discursos que são estratégias auto-referenciais do mundo, não havendo razão para distinguir entre um discurso que visa a verdade do mundo e outro meramente imaginário sem conexão com a realidade, não podendo aspirar ao estatuto de verdade.

3 comentários:

  1. Se somos parte integrante do mundo, quando falamos dele, usando ou não de metáforas, será que estamos a referir-nos a nós próprios enquanto mundo?

    Boa semana

    Abraço

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    1. De certa forma, toda a vez que alguém fala ou escreve, mesmo que seja sobre um objecto exterior a si, o discurso é auto-referencial. Escrevo: "Está a chover". Aqui temos dois tipos de coisas, pelo menos. Temos o nível locutório (onde se manifesta o sujeito que diz) e o ilocutório (o facto de se dar uma informação sobre o estado do mundo). Em todo acto de fala há sempre uma referência a si do sujeito.

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