Salvador Dali - Alucinación parcial, seis apariciones de Lenin sobre un piano (1931)
Não sou especialista em contabilizar participação em manifestações,
mas acredito que a de hoje, dois de Março, seja uma enorme manifestação contra
o governo e um protesto indignado contra a situação actual. Mais, esta manifestação
tem um elevado valor moral, pois é um veemente protesto contra uma situação
iníqua. O grande problema que se coloca, porém, não é o da quantidade de
manifestantes ou do valor moral que assiste aos que participam nela. O problema
está ligado ao seu valor político e ao potencial transformador que encerra.
A manifestação poderá incomodar algumas almas mais sensíveis, se as
houver, no governo, mas no fundo deixa-o indiferente. As manifestações tinham
impacto político quando a fonte de legitimidade do poder residia no povo. Uma
alteração do sentimento deste era sinal poderoso para o poder. Mas hoje em dia,
a fonte de legitimidade não está no povo. Foi transferida há muito para aquilo
que se designa sob a expressão ficcional “os mercados”. Os mercados são uma
ficção não porque sejam inexistentes, mas porque ocultam a face das pessoas que
operam neles. Ao ocultar essas faces retira-lhes a responsabilidade moral
perante os que são afectados pelas suas decisões. Os agentes que operam nos
mercados não se regem por normas morais mas apenas legais. As normas legais,
porém, dizem respeito apenas às regras do jogo a que se entregam. A
normatividade jurídica dos mercados – cada vez mais desregulados – perdeu qualquer
ligação ao sentimento moral e transformou-se em algo equivalente às regras que
regem um jogo de futebol, completamente amorais.
Sendo assim, estando a legitimidade política fundada na confiança dos
mercados, a indignação moral das pessoas tem pouco relevo para quem governa.
Por outro lado, há uma espécie de certeza no rumo político que está traçado.
Não se trata de uma fé cega, mas de uma certeza quase empírica. Não há
alternativa política ao que é imposto em nome dos mercados. Mesmo que o governo
caia, o próximo fará exactamente o mesmo (como o actual apenas faz o que Sócrates
já tinha feito), e os governantes actuais terão o direito à sua aprendizagem de
filosofia em Paris e ao ingresso numa das empresas que operam o (e não no)
mercado.
Não havendo alternativas políticas, a única coisa que pode afectar
esta nova ordenação económico-política do mundo é a emergência caótica, e em
larga escala, de movimentos como o de Beppe Grillo em Itália. Não tem qualquer
fim político sério, e isso torna manifesto aquilo que se passa na realidade:
deixou de haver qualquer fim político real que os homens possam perseguir. Não
há ideologias, não há finalidades, não há um bem comum a construir. As pessoas
têm apenas a possibilidade de escolher entre o caos existencial (desemprego em
larga escala, rupturas de laços familiares, perda de expectativas) imposto
pelos mercados e o caos político-social trazido por movimentos que fazem da irrisão uma
paródia às imposturas de uma classe política que vendeu os respectivos povos
aos mercados.
Talvez a manifestação de hoje, bem como a anterior, seja um momento de
transição entre as ilusões de que ainda pode haver uma alternativa política
consequente e a irrisão em que tudo isto se vai transformar. O meu coração está
com os manifestantes e com o valor moral que representam, a minha razão, porém,
sabe – tanto quanto pode saber uma razão humana – que o tempo é de caos, o qual
cresce a cada instante, a cada decisão do governo, a cada jogada feita pelos
que jogam o jogo dos mercados, a cada novo movimento que nasce do desespero das
pessoas. Seja como for, hoje sou kantiano. Mesmo que as consequências desta
manifestação sejam nulas, nada lhe retira o elevado valor moral.
Os "mercados" não enchem praças...
ResponderEliminarAcredito na justeza da manifestação e por consequência, mesmo longe, "participei" nela com a razão e com o coração.
Um abraço
O problema é que os mercados, apesar de não encherem praças, enchem outras coisas. E são estas coisas que levam à situação em que se vive.
EliminarUma boa estadia por aí.
Abraço