Arnold Böcklin - A Guerra (1896)
Jean-Claude Juncker, primeiro-ministro luxemburguês e ex-chefe do Eurogrupo, disse aquilo que há muito se tornou manifesto. Os demónios de uma guerra europeia estão apenas a dormir. Mas o sono desses demónios já foi mais profundo, havendo mesmo a forte possibilidade de um ou outro dos diabretes estar já acordado e a esfregar os olhos. Quando as situações sociais dos países se degradam, os velhos ódios populares vêm ao de cima. Depois, há uma longa história de conflitos que só os idiotas - e hoje em dia não faltam idiotas na governação e na esfera pública - podem ignorar. Quando o cálculo económico se tornou o único critério da acção política, quando a política se confinou a criar condições para o funcionamento dos mercados, quando a economia não consegue responder às expectativas com que tenta comprar as consciências humanas, o mais natural é que a velha política apareça na sua forma mais pura e dura, a guerra.
O empreendimento europeu foi construído sobre os escombros provocados pelos ódios inter-europeus na segunda Guerra Mundial. Foi uma construção cautelosa no início, mas a partir de dada altura deu passos para os quais, manifestamente, não tinha pernas. Na verdade, a cautela inicial e a ousadia dos últimos anos assentaram sempre num mero formalismo. O patriotismo constitucional europeu, para usar os termos do filósofo alemão Jürgen Habermas, nunca passou de um mero formalismo. Desse formalismo, sempre estiveram excluídos os cidadãos e os povos. Mas o mais grave, porém, reside noutro lugar. Nunca houve uma efectiva aproximação dos povos europeus, e sempre que, por necessidades eleitorais internas era necessário, os próprios políticos europeus ateavam a fogueira do chauvinismo. E não há nada onde os demónios se dêem melhor do que numa bela fogueira. A imensa trapalhada que é a actual crise é um poderoso factor incendiário. E também neste aspecto a classe política europeia tem enormes responsabilidades. A conduta irresponsável de uns (a sul) e a atitude prepotente de outros (a norte) está a abrir brechas, como se viu nas eleições italianas, que poderão não ser fechadas. Ninguém está livre de responsabilidades.
Talvez estejamos a assistir ao colapso da Europa enquanto potência de primeira grandeza na ordem mundial. Não me refiro a potência militar, pois há muito que militarmente a Europa se tornou quase irrelevante. Os exércitos dos países europeus só são uma ameça para outros europeus. Mas potência económica e ideológica. Quando quase todo o mundo se converteu aos valores - pelo menos aos económicos - inventados pela a Europa, esta parece ter-se tornado uma excrecência inútil. No entanto, é preciso não esquecer que da substância da Europa faz parte o viver em crise - é a crise que gera sempre os processos críticos e o alargamento da esfera da razão - e sair dela reforçada. A Europa, depois da época clássica greco-latina, faz três experiências políticas decisivas. A regulação teocrática da ordem política, na Idade Média, a autonomização da política com o Absolutismo e o desptismo iluminado e, por fim, o governo económico de cariz liberal. Se a ordem da governação económica cair, o que tem a Europa - quero dizer, os europeus - para dar conteúdo a uma nova ordem política?
A turbulência poderá dar lugar ao caos ou ao retorno das tiranias políticas. Mas talvez haja uma outra saída cujas traços se começam a manifestar de forma ainda inorgânica. O férreo controlo dos poderes - políticos e económicos, ou outros - pela vontade dos cidadãos. As manifestações e os protestos em diversos países podem ser momentos importantes de uma tomada de consciência da urgente necessidade de controlar a liberdade sem freio dos agentes políticos e dos agentes económicos. Como isso ganhará corpo ainda não é claro, mas o exemplo dado pelos cidadãos suíços parece trazer uma nova perspectiva que até aqui não tinha sido considerada. Não se trata de mudar do capitalismo para o socialismo, ou seja lá para onde for. Trata-se de encontrar mecanismos constitucionais para limitar o poder de todos aqueles que possuem um poder excessivo, sejam poderes políticos, sejam económicos, sejam científicos, sejam religiosos. É a hübris de um poder sem real controlo - mesmo o poder político só muito fragilmente é controlado - que está a gerar o pandemónio em que estamos a viver. Se isso for possível, talvez se evite a guerra de que fala Juncker. Se esta não for evitada e constituir a saída para a crise em que se vive, talvez seja ela a trazer, por mais uma experiência inominável e escandalosa, uma nova consciência.
Reconheço que a "panela" europeia está a aumentar a pressão, mas, quanto a uma guerra generalizada, mantenho a posição anterior.
ResponderEliminarPor muito que alguns dos "chefes" teimem em entornar o caldo.
Guerra de quem contra quem? Quando muito vamos ter umas questiúnculas ou revoltas localizadas, para reescrever a Geografia e a História, deste continente`a beira da insolvência.
Um conflito generalizado não pode acontecer à revelia dos USA e da Rússia.
Abraço
Tudo depende da evolução da situação. Note-se uma coisa. Até aqui quem falava da possibilidade de uma guerra era gente fora das estruturas europeias. Esta intervenção de Juncker muda a matriz dessa referência. Alguém profundamente comprometido reconhece que se está a abrir essa possibilidade. Se a insolvência chegar mesmo e de forma radical, então logo haverá quem descubra o inimigo. Recorde-se que as próprias elites governantes são móveis. Nada garante que amanhã, numa situação generalizada de bancarrota, não cheguem ao poder, nos países centrais, elites mais musculadas. Não é um destino, mas tornou-se uma possibilidade.
EliminarAbraço