Para além das percentagens e dos deputados eleitos, o que podemos ler –
tanto quanto é possível ler no somatório de milhões de vontades e razões
individuais – na votação de ontem? Antes de começar a leitura, um aviso à
navegação. Uma coisa são os desejos e outra é o possível e realizável. Uma coisa é o
princípio de prazer e outra o de realidade. O que nos dizem as eleições de
ontem? Comecemos por uma análise dos resultados da coligação PAF (PSD/CDS). Nos
próximos dias, olhar-se-ão os resultados do PS, do BE, da CDU e do PAN.
A coligação governamental teve uma vitória estrondosa, apesar de ter
perdido a maioria absoluta e cerca de 700 mil votos. Por que razões enfatizo a
vitória da coligação? Por 5 razões. Em primeiro lugar, conseguir ganhar as
eleições, mesmo com maioria relativa, depois de quatro anos de uma governação
radical (ir além da troika, mandar as
pessoas emigrar, etc. etc.), embora suavizada com o aproximar das eleições, é
um feito notável. Governações destas são, por sistema, reduzidas a pó nas urnas. Esta não foi.
Em segundo lugar, porque, com estes resultados, a coligação tem todas
as condições, com pretextos mais ou menos irrelevantes, para fazer cair o seu próprio governo minoritário, alegando bloqueio da oposição, e ganhar umas novas eleições com
maioria absoluta. Não nos iludamos com a voz mansa de Coelho e de Portas no dia
de ontem. A candura das declarações fazia já parte da nova campanha eleitoral
em curso. Os objectivos estão traçados: encostar os socialistas às cordas. Ou
votam no que a coligação bem entender, depois de uma encenação de busca de consenso,
ou a coligação gritará por tudo o que é sítio que não deixam governar quem
ganhou. E a coligação é muito profissional a gritar.
Em terceiro lugar, porque consolidou Passos Coelho, à partida uma
personagem menor, como figura central no sistema político português. Não
interessa se se gosta ou não do líder do PSD. A verdade é que ele pôs Paulo
Portas no lugar, tornando-o uma espécie de valete de quarto, liquidou António
José Seguro e António Costa. A substância dos políticos testa-se na luta pela
conquista e pela manutenção do poder e Passos Coelho tem passado nos testes,
mesmos os mais difíceis, como o de ontem. Goste-se ou não.
Em quarto lugar, porque tem o PS, o maior partido da oposição, refém
das suas posições. A grande descida de votos da coligação governamental e o
pequeno aumento dos socialistas não foi suficiente para tornar a maioria governamental
refém dos socialistas. Nas actuais circunstâncias políticas (sublinho nas actuais, pois a realidade é volátil e pode mudar), são os socialistas
que estão reféns dos desejos e da vontade da coligação. E não se antevê que os
socialistas se possam facilmente libertar do abraço que a coligação lhes vai
dar. Qualquer alinhamento dos socialistas com a esquerda provocará uma tempestade tal que o largo do Rato ameaçará cair.
Em quinto lugar, é uma grande vitória porque o espaço ideológico a que pertence ficou
claramente consolidado. Esta é a maior vitória da coligação de direita. Explico.
Em 2011, Passos Coelho ganhou mentindo sistematicamente, atacando Sócrates pela
esquerda, canalizando para si o descontentamento com a austeridade já em vigor
no tempo de Sócrates. Em 2015, quase 40% do eleitorado, depois de ter experimentado
um governo com políticas austeritárias e tintas liberais, disse que gostou e
que quer mais.
A vitória ideológica da coligação não acaba aí. Os próprios
socialistas apresentaram-se com um programa ideologicamente semelhante ao da
coligação, talvez, em certos aspectos, ainda mais liberalizante. Mesmo assim, e
apesar de ter perdido votos para a esquerda, a versão austeritária e liberal
dos socialistas obteve mais de 30% dos votos. Cerca de 70% dos portugueses
disse claramente que queria a política imposta por Bruxelas e determinada pela
Alemanha, que queria ares mais liberais na economia e mais dissolução do Estado
social, embora de forma mais gradual.
Dir-se-á que esta percentagem é a habitualmente obtida, talvez um
pouco menor, pelo grupo de partidos do arco da governação. É verdade, mas há
uma diferença absoluta. Até aqui esses partidos tinham essa votação na base de
promessas mirabolantes. Nas eleições de ontem não foi assim. Quem foi votar
sabia claramente ao que ia. Os 70% de eleitores votaram numa das versões
caseiras do ordo-liberalismo dominante na Europa. Isto significa que, de uma
maneira ou de outro, o papel do Estado como factor de igualdade sofreu uma
pesada derrota, apesar das condições ontem enunciadas por Costa para haver
acordo com a maioria.
Concluo como comecei. Uma coisa é o que desejamos e outra é aquilo que
a realidade nos devolve. O que aconteceu ontem foi uma subtil mudança de
território político, mudança imposta pela direita durante quatro anos e
consagrada nas eleições. Quem não se revê nos princípios triunfantes o pior que pode fazer é
achar que há uma maioria de esquerda na assembleia e que isso tem alguma
consequência na governação. A questão será, de facto, outra: como trazer para
dentro do novo território os princípios que parecem não ter lugar nele?
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