José Jiménez Aranda - El Quijote
A situação gerada pelos resultados eleitorais merece ser pensada para
além daquilo que é o interesse partidário imediato. A questão centra-se na
indignação moral de muitos apoiantes da coligação PàF, a mais votada, perante a
possibilidade de um partido menos votado, o PS, poder formar governo, desde que
consiga um acordo com os partidos à sua esquerda e obtenha, desse modo, uma
maioria no parlamento que apoiará esse governo. Na esfera pública, têm-se
confrontado, para além do argumento da tradição e do argumento da eficácia
política, que deixaremos de lado, dois argumentos. Um argumento moral fundado
na ideia de virtude: é injusto – isto é, não é virtuoso – que o partido
perdedor das eleições acabe por ser ele a formar governo em detrimento daquele
que obteve mais votos. Um segundo argumento puramente processual fundado na lei
constitucional: o que determina a formação de um governo não é o facto de se
ter obtido mais votos, mas, como o governo depende do parlamento, o facto de
conseguir ou não uma maioria de deputados que o apoiem.
Estes argumentos são, à partida, incomensuráveis, pois estão a falar
de coisas diferentes. Não se podem contrapor num debate para determinar, por
exemplo, como deve agir o Presidente da República. As decisões políticas devem
ser tomadas segundo as regras processuais neutras e imparciais elaboradas a priori, devendo deixar de lado
considerações de carácter moral. Contudo, a indignação e o grito de injustiça dos
apoiante da coligação que obteve mais votos merecem ser pensados. Para tal,
contudo, há que dizer que, muito provavelmente, se a situação fosse ao
contrário, se fosse o PS ganhar as eleições, mas os partidos de direita obtivessem
uma maioria no parlamento, os defensores das normas processuais neutras seriam
os actuais apoiantes da coligação e os indignados morais estariam do lado da
esquerda, nomeadamente do PS.
O que está em jogo não é muito diferente daquilo que sucede no mundo
da economia, quando o mercado de trabalho está desregulado, como por norma é
defendido pela direita, e os contratos de trabalho dependem apenas da
negociação individual entre trabalhadores e entidades patronais, segundo a
presunção de que todos são livres e iguais no acto contratual. Por norma, a
esquerda argumenta que essas situações são injustas (moralmente pouco
virtuosas), pois, apesar das normas suporem que as partes são livre e iguais,
há uma desproporção entre elas, pelo facto do trabalhador estar numa situação
de fragilidade e poder ter de aceitar um salário injusto, mas que é determinado
pela lei – neutra e imparcial – da oferta e da procura. O que me interessa
nestes dois casos não é discutir sobre quem tem razão. O que me interessa é
outra coisa: o conflito que há entre as normas processuais tidas como neutras e
imparciais e o nosso sentimento de justiça. A aplicação imparcial de normas tidas
como neutras e existentes a priori
não consegue aplacar a sensação de que eles produzem situações em que nos
sentimos injustiçados, pois acabam por recompensar quem perdeu ou penalizar
quem é fraco, expulsando da decisão qualquer consideração do que é ou não é
virtuoso, do que é bom e justo.
Esta situação emerge com a modernidade e a subsequente autonomização
das diversas esferas de vida. A economia tem as suas regras que devem ser
autónomas tanto da moral como da política. A política rege-se por princípios que
lhe são próprios e de carácter imparcial, que, na prática, não têm em
consideração o que é virtuoso moralmente. A moral tornou-se uma questão de
consciência individual, mas, devido à pluralidade de convicções morais, que não
tem influência decisiva na determinação das regras da vida económica e da vida
política. Qual a vantagem de a vida política e de a vida económica se regularem
por regras processuais onde a virtude moral – o bem e a justiça – não são tidas
em conta? A vantagem é que essas regras processuais não impõem, pelo menos em
aparência, nenhum visão particular do que é o bem e do que é o justo. Deixam à
liberdade individual a decisão de determinar o que é para cada um a justiça ou
o bem. Esta vantagem assenta numa concepção não paternalista e que sublinha o
carácter formal da liberdade dos indivíduos e da sua igualdade. A contrapartida
é a expulsão da virtude moral na determinação das regras fundamentais da vida
em sociedade.
O resultado são as explosões de indignação pela possibilidade das
coisas determinadas por essas regras imparciais e neutras colidirem com o nosso
sentimento de justiça. A questão, porém, não me parece de resolução conciliatória.
Uma das tentativas mais consistentes teoricamente de resolver este problema é a
Teoria da Justiça de John Rawls, mas a sua aplicação às sociedades reais é, no
mínimo, muito problemática, como o fez notar Robert Nozick. Para que as regras
que regulam a vida política e económica fossem permeadas por uma concepção moralmente
virtuosa seria necessário que houvesse um consenso sobre o que é virtuoso e que
esse consenso se traduzisse na unificação das esferas da acção humana: a
política, a moral e a economia. Esse tempo acabou com o fim da cristandade
medieval. Subsiste no desejo e no ideário dos fundamentalismos religiosos, mas
não é praticável em sociedades plurais. A moral bem como a religião pertencem
agora à esfera privada. O que resta? Aos cidadãos resta a vigilância contínua sobre
a imparcialidade das regras, nomeadamente das regras políticas, e um debate
contínuo sobre o que é a virtude moral que cada um deve ostentar na vida social.
Debate significa pluralidade de pontos de vista, comunicação entre eles e
argumentação. Esse debate não dará conteúdo substantivo às regras processuais,
mas tornará patente o pluralismo moral e a necessidade de aceitar as regras
processuais neutras.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.