Francis Bacon - After the life mask of William Blake III (1955)
O rancor de Cavaco na comunicação da indigitação de Passos Coelho
incendiou os ânimos de toda a esquerda, a qual, recorde-se, obteve mais de 50%
dos votos e possui, se unida, uma maioria parlamentar. O que incendiou a
esquerda não foi a indicação do líder do PSD para primeiro-ministro. Isso é
absolutamente constitucional e, na minha óptica, era a única coisa que Cavaco
Silva devia fazer. O que fez os ânimos exaltarem-se foi o despudorado apelo à
sedição e concomitante traição nas hostes dos socialistas e a exclusão na
participação de soluções governativas que foi sentenciada aos representantes de
mais de 18% dos eleitores.
Mais que um rancor político – que também o é – a comunicação de Cavaco
é o retrato de um homem derrotado, de um homem que nunca compreendeu a natureza
do regime democrático (onde foi tão bem tratado). Derrotado porquê, perguntará
o leitor. Cavaco Silva é o homem que, de longe, mais vitórias políticas obteve
no Portugal democrático. É um dos grandes responsáveis pela natureza do regime
e pelo aspecto que ele tem. Mas podemos dizer que Cavaco foi de vitória em
vitória até à derrota final.
Quando se apresta para sair da vida política, depois de 10 anos em
Belém, ele, que recebeu um país pacificado, vai deixar o quê? Ele passou os
mandatos a falar no consenso dos partidos do arco da governação, embora nunca
tenha feito nada para moderar o extremismo do governo e a ânsia de vingança que
habitou a maioria absoluta de Passos Coelho e Paulo Portas. Protegeu as
tropelias de Portas e as palavras torpes que foram dirigidas aos portugueses
mais fracos. Protegeu todas as opções que enfraqueceram as classes médias e
deitaram ao desprezo os sectores mais frágeis. O apelo ao consenso foi sempre
um apelo para que os socialistas assinassem por baixo os desvarios do governo
cessante. Lembram-se de o ir além da troika?
Qual vai ser o legado da magistratura de influência de Cavaco Silva, o
legado do seu desprezo pela política e do seu amor à união nacional? Enumeremos
o legado: as classes médias destruídas e a consequente destruição do centro
político; a sua maioria (PSD+CDS), apesar de sistematicamente protegida por si,
em minoria; o país completamente dividido em duas facções, ambas em fronda
aberta, ambas despeitadas; um Partido Socialista, que fora sempre um moderador
da política nacional, em luta para não desaparecer e, por isso, a encostar-se à
sua esquerda; os dois partidos críticos dos actuais caminhos da Europa com um
milhão de eleitores, com mais de 18% dos votos e às portas da governação. Este
é o legado de Cavaco Silva. É obra.
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