sábado, 24 de outubro de 2015

O rancor de Cavaco Silva

Francis Bacon - After the life mask of William Blake III (1955)

O rancor de Cavaco na comunicação da indigitação de Passos Coelho incendiou os ânimos de toda a esquerda, a qual, recorde-se, obteve mais de 50% dos votos e possui, se unida, uma maioria parlamentar. O que incendiou a esquerda não foi a indicação do líder do PSD para primeiro-ministro. Isso é absolutamente constitucional e, na minha óptica, era a única coisa que Cavaco Silva devia fazer. O que fez os ânimos exaltarem-se foi o despudorado apelo à sedição e concomitante traição nas hostes dos socialistas e a exclusão na participação de soluções governativas que foi sentenciada aos representantes de mais de 18% dos eleitores.

Mais que um rancor político – que também o é – a comunicação de Cavaco é o retrato de um homem derrotado, de um homem que nunca compreendeu a natureza do regime democrático (onde foi tão bem tratado). Derrotado porquê, perguntará o leitor. Cavaco Silva é o homem que, de longe, mais vitórias políticas obteve no Portugal democrático. É um dos grandes responsáveis pela natureza do regime e pelo aspecto que ele tem. Mas podemos dizer que Cavaco foi de vitória em vitória até à derrota final.

Quando se apresta para sair da vida política, depois de 10 anos em Belém, ele, que recebeu um país pacificado, vai deixar o quê? Ele passou os mandatos a falar no consenso dos partidos do arco da governação, embora nunca tenha feito nada para moderar o extremismo do governo e a ânsia de vingança que habitou a maioria absoluta de Passos Coelho e Paulo Portas. Protegeu as tropelias de Portas e as palavras torpes que foram dirigidas aos portugueses mais fracos. Protegeu todas as opções que enfraqueceram as classes médias e deitaram ao desprezo os sectores mais frágeis. O apelo ao consenso foi sempre um apelo para que os socialistas assinassem por baixo os desvarios do governo cessante. Lembram-se de o ir além da troika?

Qual vai ser o legado da magistratura de influência de Cavaco Silva, o legado do seu desprezo pela política e do seu amor à união nacional? Enumeremos o legado: as classes médias destruídas e a consequente destruição do centro político; a sua maioria (PSD+CDS), apesar de sistematicamente protegida por si, em minoria; o país completamente dividido em duas facções, ambas em fronda aberta, ambas despeitadas; um Partido Socialista, que fora sempre um moderador da política nacional, em luta para não desaparecer e, por isso, a encostar-se à sua esquerda; os dois partidos críticos dos actuais caminhos da Europa com um milhão de eleitores, com mais de 18% dos votos e às portas da governação. Este é o legado de Cavaco Silva. É obra.

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