Remedios Varo - Modernidad (1936)
Há um assunto que me interessa particularmente que é o da modernidade
e do seu hipotético fim. O que quero eu dizer com isto? Que o processo
civilizacional que começou no pós-renascimento, com a filosofia cartesiana e a
ciência moderna, que ganhou substância no pensamento do iluminismo,
nomeadamente com Kant, que encontrou na revolução industrial a sua energia, que
supôs, tanto na versão liberal como na marxista, uma emancipação racional,
ainda que diferenciada, do homem, pode ter chegado a um ocaso. Há sintomas
desse ocaso? Há. Tanto o individualismo, nascido do subjectivismo cartesiano e
do liberalismo empirista de Locke, como a ciência e a economia apresentam
sinais de profundas contradições.
Por exemplo, o crescimento dos direitos e da afirmação dos indivíduos
está a conduzir a situações em que os indivíduos libertados da tutela social se
encontram agora abandonados e nesse sentimento de abandono cresce um outro
sentimento: o de uma vida desprovida de sentido e, por isso, irracional.
Por seu turno, a economia nascida com a revolução industrial gerou um
conjunto de contradições (não apenas as sociais e económicas analisadas por
Marx), nomeadamente uma contradição naquilo que foi considerado como um stock
de matérias-primas para o homem, isto é, a natureza. O desenvolvimento
indefinido da economia implica a existência de um stock infinito sempre
disponível. Ora a natureza, esse fundamento material da economia, nem é
infinita, nem parece disposta a aceitar sem vingança a sua redução a um mero
stock à disposição do capricho do homem.
Por fim, a própria ciência apresenta também contradições
interessantes. A ciência é uma actividade de investigação racional da
realidade. No entanto, a sua afirmação e expansão foi feita sempre na base de
um programa ideológico: a ciência seria um auxiliar libertador e emancipador do
homem das tutelas que a ignorância e a servidão à natureza impunham. Ora as
ciências empírico-analíticas, como por exemplo a Física, a Química e a
Biologia, libertaram um conhecimento tal que ele pôs à disposição um poder que,
a cada momento, parece querer abater-se e esmagar o próprio homem. Mas não são
apenas as ciências empírico-analíticas que levantam este problema. Também as
ciências humanas e sociais, nomeadamente a sociologia e a psicologia, têm
contribuído para o crescimento das formas de dominação e de esmagamento do
homem. O carácter emancipatório que alimentou a legitimação da actividade
científica é hoje absolutamente problemático.
Em todos estes processos, todos de carácter racional, há uma coisa em
comum: a razão a dado momento do devir dos processos mostra um fundo
irracional. Esta irracionalidade não é a mesma que habitaria os sentimentos de
fé medievais ou outro tipo de superstições. É uma irracionalidade gerada pelos
próprios mecanismos da razão, de uma razão que, ao mesmo tempo, se fragmenta
(razão científica, razão económica, razão social, razão psicológica) e se
absolutiza. As contradições apontadas atrás, são apenas encarnações de uma
contradição que habita os processos racionais e a própria razão.
Vale ainda a pena olhar para o fenómeno no âmbito da política. A
experiência do socialismo, já consumada, mostrou o mesmo fenómeno: a
emancipação do homem gerou sociedades onde a liberdade foi aniquilada, como se
a emancipação não implicasse, na sua natureza, a própria liberdade. Mas a
experiência pela qual agora passamos, a do liberalismo, não é diferente da do
socialismo real: a consideração liberal de que todos os homens são seres
racionais e se movem por interesses racionais está a mostrar também os seus
limites extremos: o interesse racional de alguns é que outros não sejam
considerados homens, isto é, que sejam escravos e logo não possuam interesses
racionais. Assim como a lógica emancipatória do socialismo acabou, ao eliminar
a liberdade, na contradição consigo mesma, também a lógica do liberalismo, ao
não limitar o interesse, está a criar condições para uma efectiva eliminação da
liberdade e uma desrealização do homem enquanto ser racional (aliás, muito
desta análise foi feita por Marx).
Para concluir, o conjunto de contradições que foram geradas pelos tempos modernos, contradições que se agudizam continuamente, apontam claramente para o ocaso da modernidade. Também os conceitos que utilizámos para viver e pensar essa realidade ainda viva estão moribundos. Penso que o conceito de socialismo está morto e o mesmo começa a passar-se com o de liberalismo. Aquilo que talvez seja o mais difícil é a criação de novos conceitos, não conceitos que expliquem o que se passou, mas conceitos que captem o caminho a seguir, que lancem as bases do que se há-de desenvolver. Por exemplo, como pensar a política após a morte do socialismo e do liberalismo? Como conjugar o ideal de liberdade, da tradição liberal, com o ideal de justiça social, da tradição socialista?
Para concluir, o conjunto de contradições que foram geradas pelos tempos modernos, contradições que se agudizam continuamente, apontam claramente para o ocaso da modernidade. Também os conceitos que utilizámos para viver e pensar essa realidade ainda viva estão moribundos. Penso que o conceito de socialismo está morto e o mesmo começa a passar-se com o de liberalismo. Aquilo que talvez seja o mais difícil é a criação de novos conceitos, não conceitos que expliquem o que se passou, mas conceitos que captem o caminho a seguir, que lancem as bases do que se há-de desenvolver. Por exemplo, como pensar a política após a morte do socialismo e do liberalismo? Como conjugar o ideal de liberdade, da tradição liberal, com o ideal de justiça social, da tradição socialista?
Neste
âmbito, a minha perspectiva é a do abandono da submissão da política à
economia, submissão presente tanto nos liberais como em Marx. Há que fazer
implodir o conceito de economia-política. Avanço uma tese, provavelmente sem
qualquer originalidade: o carácter distópico do socialismo real e do
liberalismo reside na submissão dos imperativos políticos aos imperativos
económicos. Mas isto é ainda e só uma tese sobre o passado histórico. Não é o
conceito vivo que permite pensar aquilo que, por não ter sido pensado, dá que
pensar. (averomundo, 2008/01/24)
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