segunda-feira, 1 de abril de 2019

Fascínio e cegueira


Um dos principais problemas que se levanta a quem quer conhecer a realidade para lidar com ela é o fascínio exercido pelas palavras. Esse fascínio logo se transforma em cegueira. É o que se passa no mundo da política. Veja-se o caso português. A retórica política usada pelos partidos de poder, mas mais claramente nos de direita, encostava tanto o BE como o PCP à extrema-esquerda. Como partidos extremistas, não poderiam nunca chegar ao poder ou sustentar um governo moderado no parlamento. A verdade, porém, é que há muito as soluções políticas propostas tanto pelo PCP como BE têm um cariz social-democrata e reformista. A designação de extrema-esquerda cegou a direita portuguesa e não a deixou perceber a realidade. Foi isso que tornou penoso o comportamento de Passos Coelho quando a geringonça tomou conta da governação do país. Ele não compreendia o que se passava porque estava cego pela retórica que usava.

Esta cegueira não existe apenas em Portugal. Europa fora, a retórica política está fascinada com a extrema-direita. O rótulo, espera-se, deverá ser suficiente para afastar o eleitorado desses partidos que estão a emergir por todo o lado. Pensa-se que basta fazer uma ligação memorial ao fascismo e ao nazismo para que os cidadãos corram a abrigar-se nos braços dos partidos tradicionais. Enquanto isso, enquanto se usam rótulos e se apela a memórias que já são de muito poucos, fica-se cego para o que está a deslocar largas massas de eleitores para as soluções políticas adversas ao mainstream que tem governado o Ocidente nas últimas décadas. Ainda há dias as eleições regionais holandesas foram ganhas pelo Fórum para a Democracia, um partido recente e, também ele, qualificado como de extrema-direita.

Essas soluções políticas estão a crescer em votos e isso tem um significado que não se quer ver. Os eleitorados estão cansados e agastados com o que os partidos tradicionais têm para lhes propor. E isto, hoje em dia, não diz apenas respeito às questões económicas, embora estas sejam importantes, mas também às questões culturais e civilizacionais. O conjunto de alterações provenientes da globalização e as rupturas culturais (as causas fracturantes, por exemplo) estão a deixar os eleitores inseguros. Os partidos políticos tradicionais não perceberam que estavam a ir longe de mais, que os cidadãos não os acompanhavam. Cegos pelo fascínio que a designação extrema-direita exerce, não viram os eleitores a afastarem-se e a acolher-se nos braços dos que deveriam não ter votos só porque, num acto mágico, se lhes cola um rótulo e se utiliza esse rótulo como um mantra.

[A minha crónica em A Barca de Abril]

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