Presumo que poucos leitores saberão,
hoje em dia, quem foi Kurt-Erich Suckert, um italiano filho de pai alemão e mãe
lombarda. O próprio fez alguma coisa por isso ao mudar o nome para Curzio
Malaparte. A sua vida, plena de peripécias, em que a primeira digna de nota é a
fuga do colégio para ir combater na primeira guerra mundial, pode ser vista
como um retrato da primeira metade do século XX europeu. Ela é também um
símbolo da conversão. No período entre grandes guerras converte-se ao fascismo,
mas acaba por romper com o regime, sendo aliás perseguido. Depois da segunda guerra
mundial dá-se uma conversão ao comunismo. A sua adesão ao PCI, porém, só será aceite,
por Palmiro Togliatti, no final da vida de Malaparte. Um mês antes de morrer,
em 1957, é baptizado e recebe a primeira-comunhão. A última conversão.
O romance A Pele, data de 1949. A tradução portuguesa é de Alexandre O’Neill,
para a colecção Dois Mundos dos Livros do Brasil. A acção desenrola-se a partir
de 1943, na altura em que os exércitos aliados entram em Itália, como
libertadores, e ocupam Nápoles. A personagem principal é o próprio Malaparte,
na altura oficial de ligação entre as forças da resistência italiana e o
comando americano. Este facto gerou um contínuo questionamento sobre a natureza
do romance. Será ele uma memória biográfica, uma reportagem jornalística, ou
uma narrativa de invenção? A questão, porém, é irrelevante. A verdade de uma
obra de arte não depende da sua relação com os factos vividos pelo autor, mas da
congruência do mundo que essa obra cria e oferece à contemplação do leitor.
Duas chaves possíveis para ler a
obra são-nos dadas nos capítulos “IX – A Chuva de Fogo” e “X- A Bandeira”. No
primeiro, a narrativa centra-se na erupção do Vesúvio em 1944 e esta funciona
com uma alegoria da própria guerra. Não se trata, porém, de estabelecer uma analogia
entre o número de vítimas dos dois fenómenos, mas de fornecer uma primeira
chave de leitura sobre a guerra. Para aqueles que são expostos a ela, a guerra
é um fenómeno da mesma natureza dos cataclismos naturais. A contenção do seu
poder destrutivo está muito para além do livre-arbítrio daqueles que a sofrem.
Para estes é como uma catástrofe desencadeada pelas forças inomináveis da natureza. No capítulo “A Bandeira” é contado
um acidente em que um homem, comemorando a entrada do exército aliado, acaba
por ficar debaixo de um tanque. Fica reduzido a uma fina pele. E essa pele é a
bandeira de todos aqueles que sofrem o absurdo da guerra. Salvar a própria pele
é o que move, em última instância, cada um que é apanhado na erupção desse
vulcão sob as ordem de Marte.
É em nome da salvação da pele,
ameaçada pela fome, que os napolitanos descem às maiores indignidades, perante
o exército aliado triunfante. A prostituição das mulheres e das crianças, a
sujeição a práticas inverosímeis, a degradação da condição humana, tudo isso
faz parte daquilo que Malaparte denomina como a peste. Não se trata da peste
orgânica dos velhos tempos medievais, nem sequer a peste que toda a guerra metaforicamente
é. Trata-se da peste moral a que os homens, sob o império da fome, se sujeitam
para salvar a sua bandeira, a pele. O olhar de Malaparte é impiedoso e, ao
mesmo tempo, compreensivo. É também o olhar de alguém que sofre perante o
destino de uma Europa submetida a duas grandes guerras, de alguém que cobre com
o cinismo a chaga aberta pelo suicídio dessa Europa.
O olhar desencantado de Malaparte
permite-lhe perceber tudo aquilo que de mais negro se mistura nestes momentos
de libertação, sublinhando não sem ironia a possibilidade de os italianos serem
vencedores da guerra que perderam. O autor sabe que os vencedores não são
aqueles que combatem, que correm riscos, que põem em jogo a sua pele. Os
vencedores são aqueles que, durante as horas negras, se escondem e estão sempre
prontos a aclamar o vencedor, seja ele qual for. O amanhã será deles. Este
cinismo tem outra face. Esta é a da consideração da inocência das tropas
americanas – mesmo que o seu comportamento seja reprovável. Os americanos não
sabem nada da Europa, dos seus conflitos, dos seus ódios e dos seus amores, e
olham-na cândidos e perplexos, desejosos de regressar a casa, a um mundo mais
simples e menos povoado pela morte.
Na parte final do romance, num
mundo onde só os mortos contam, Malaparte escreve: “Que seria do mundo, de
todos nós, se entre tantos mortos não estivesse um Cristo?” Esta interrogação
abre o caminho do leitor para uma outra e surpreendente interpretação do fenómeno
da guerra. Já não da guerra vista como um desastre natural por quem a sofre,
mas como um acontecimento soteriológico. “Cristo morreu para nos ensinar que cada
um de nós pode tornar-se Cristo, que cada homem pode salvar o mundo com o seu
próprio sacrifício. Também Cristo teria morrido inutilmente se cada homem não
pudesse tornar-se Cristo e salvar o mundo.” Esta leitura sacrificial da guerra
entronca na teoria dos sacrifícios de Joseph de Maistre, conferindo assim um
sentido à loucura dos homens e à destruição que ela implica. Para que todas
essas mortes possam ter algum significado é preciso que elas representem um
sacrifício que abra o caminho à redenção.
Pois nunca ouvira falar dele, mas adorei a resenha. Vejo que a obra nem existe na wook, provavelmente apenas num alfarrabista. Mas se me cruzar com ela este artigo há de me vir à memória.
ResponderEliminarAinda se encontram alguns exemplares em sites como o Coisas, o OLX ou o CustoJusto, onde há um bom número de alfarrabistas.
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